TEXTOS
Tem culpa eu? - de Ivan Fernandes
De Ivan Fernandes
Mesa de reunião. 3 executivos(as) aguardam. Chega mais um, atrasado, descabelado, com caneca de café. Uma zeladora passa um pano discreto nos fundos da sala.
1 - Já começou?
2 - Calma! O chefe ainda não chegou...
1 - (respira) Vim igual um louco pela estrada. O que deu no homem? Convocar reunião numa manhã de segunda-feira pós-feriado? Nem a terceira guerra mundial justifica...
3 - O conselho todo está presente. Ele foi bem claro.
1 - Mas nesses casos a gente podia usar Skype, videoconferência... reunião presencial? Que coisa mais século XX!
4 - Se bobear ele vai exigir relatório escrito à mão...
2 - Ele mandou um. 20 páginas. Alguém leu?
Todos - Nem fodendo!
3 - Pra mim é corte. É demissão na certa.
4 - Você, sempre paranoico.
(Entra o chefe)
C - Estão todos aí? Podemos começar?
(todos pigarreiam, ajustam papéis, notebooks)
C - Imagino que tenham lido o relatório que enviei.
(disfarçam, mexem folhas, pigarreiam, digitam)
C - Podemos resumir essas 20 páginas em apenas uma palavra. Qual?
(a pergunta fica no ar. Os conselheiros olham uns para os outros, em busca da resposta.)
C - (triunfal, desenha a palavra no ar) Im-pu-ni-da-de. (os conselheiros continuam sem entender direito) O Brasil não aguenta mais. Vejam os jornais, a tv, as ruas, as redes sociais. Todos pedem o fim da impunidade. E eu vejo um filão aí. É isso que a nossa empresa vai oferecer.
2 - Vamos vender... o fim da impunidade?
3 - Mas... como? O Brasil tenta acabar com a impunidade há mais de 500 anos!
C - Lembram do projeto ultra secreto X-14?
4 - aquele convênio com a Suécia, caríssimo, que ninguém sabia do que se tratava?
C - Era arriscado demais! Se qualquer outro soubesse, podia entrar água! Mas agora ele está pronto! Pode entrar, Arthur!
(entra um robô e para do lado do chefe.)
2 - um... robô?
C - não é um simples robô. é um robô sueco, que fareja corrupção!
(todos riem)
1 - Não tinha lá uma galinha dos ovos de ouro também?
3 - Um pé de feijões mágicos...
C - Quando o ser humano sente culpa e medo de ser descoberto, ele exala um odor característico. A temperatura corporal também muda. Esse robô foi programado pra registrar as variações no odor e na temperatura dos corpos, em busca de qualquer vestígio de culpa. Duvidam?
1 - O senhor devia ter testado antes de comprar...
C - Pois vamos fazer isso agora! Fomos acusados de desvio de verbas na licitação daquelas obras. Pois bem. (para o robô) Arthur! Mostre se alguém aqui está envolvido!
(o robô vai até o centro da sala. Desconforto e apreensão. Ele lentamente dá uma volta, parecendo farejar cada um. Se aproxima do executivo 2 e faz o sinal. Todos olham pro executivo 2)
2 - Obviamente, é um engano. Vocês vão acreditar em mim ou nessa máquina?
O robô imprime uma série de extratos.
2 - Mas o que é isso?
C - Extratos de contas em seu nome nas ilhas Cayman. Milhões de dólares desviados. O robô tem os dados de vocês e acesso ilimitado a tudo que envolva seu nome na internet.
2 - Mas... isso é ilegal!
C - Por enquanto ainda é... A propósito: está despedido! A polícia o aguarda fora da sala!
(todos aplaudem, enquanto o corrupto pega suas coisas e sai)
C - Imaginem quanto vamos lucrar quando cada empresa, cada casa brasileira tiver um desses!
O robô, inesperadamente, continua a se mexer pela sala, pra espanto dos executivos. Ele para em frente ao executivo 3.
3 - Ei! Eu não tive nada a ver com aqueles milhões de dólares!
O robô imprime outros extratos.
C - È verdade. Mas está vendendo informação privilegiada a nossos concorrentes. E superfatura notas de táxi e restaurante da empresa pra tomar uma cervejinha por fora. Mais um corrupto pego pelo robô. Está despedido! A polícia o aguarda!
Os outros executivos aplaudem, enquanto o executivo 3 sai.
C - Como podem ver, vamos precisar fazer uma reformulação geral nos nosso quadros e...
O robô mais uma vez começa a funcionar e para na frente do executivo 1. Imprime extratos.
C - Você pagou propina pra não ser multado pelo guardinha por excesso de velocidade, quando vinha pra cá!
1 - mas... mas... todo mundo faz isso!
C - Não mais! Estamos inaugurando um novo tempo na história do Brasil! Pode sair, a polícia o aguarda!
Sai. O executivo 4 aplaude sem muito entusiasmo.
4 - Já deu pra entender como funciona, acho que podemos terminar a reunião e...
O robô se aproxima do executivo 4. Imprime extratos.
4 - Sai pra lá! Eu não tô envolvido com nenhum esquema!
C - Você é maconheiro! Antes de ser programado pra identificar corruptos, o Arthur trabalhava na repressão de drogas! Ele é capaz de identificar o usuário de 335 drogas diferentes! Pode sair! A polícia o aguarda.
Executivo 4 sai. Chefe esfrega as mãos, contente.
C - Fama! Fortuna! Meu nome nos livros de história.
O robô se aproxima da zeladora, que o observa em pânico. Antes de qualquer extrato, ela se ajoelha e confessa.
Z - Eu entro no caixa de 15 volumes com o carrinho de supermercado cheio e finjo que não vi a placa! Eu compro bebida e cigarro com vale alimentação! Tenho carteira de estudante falsa pra pagar meia entrada no cinema! Minha casa tem gato de luz e fica com ar condicionado ligado o dia inteiro! Eu confesso!
Sai com as mãos pra cima, rendida. O chefe olha pro robô, espantado.
C - Mas você é muito melhor e mais completo do que jamais sonhei! Finalmente poderemos sonhar com um Brasil sem impunidade!
O robô começa a soar uma sirene. O policial entra.
P - o que está havendo por aqui?
C - nada, acho que o robô está desgovernado, ele ainda precisa de uns ajustes...
O robô exprime mais um extrato.
P - aqui diz que o senhor tem um filho fora do casamento...
C - mas isso não é crime!
P - mas está devendo anos de pensão alimentícia!
(algema o chefe. O robô soa outra sirene e imprime extratos)
C - E essa agora?
P - Essa não! Esse filho da puta descobriu minha ligação com as milícias!
O robô algema o policial, os dois saem.
P - Tá virando bagunça! Palhaçada! Assim o Brasil para!
C - quem vai ser o próximo?
O robô para. Olha pra plateia. Sorri. Parece farejar alguma coisa. Se aproxima da escada que desce pra plateia, mas felizmente as luzes apagam antes e é o fim da história...
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Não Passarão - De Ivan Fernandes
Apartamento. Campainha toca. Toca mais um pouco. Vem atender Milena, um tanto sonolenta e confusa, envolta em lençol, ainda um pouco borrada de maquiagem.
M – Quem é?
S – Dona Milena, é o síndico! Vim recolher a taxa de condomínio.
A informação faz Milena acordar mais um pouquinho. Ela ajeita o lençol o melhor que pode e abre a porta.
M – Já é dia 10?
S – Onze. Ontem eu catei a senhora o dia todo.
M – Ai, desculpe, Seu Machado. Eu deixei o dinheiro separadinho, ó aqui. (pega um envelope fechado em cima da mesa e entrega) Eu nem vi o dia 10 passar, tô ensaiando tanto que.
S - (pega o envelope. Dá uma sacada na mulher) É. Dá pra notar que tem ensaiado muito...
M – (sem saber se entendeu direito a maldade) – Como é que é?
S – Aliás, a vila inteira tá incomodada com o seu volume de trabalho... principalmente à noite... aliás, a noite foi boa, hein...
M - (realizando) – Seu Machado, quando eu lhe dei esse tipo de liberdade?
S – Você já deu coisa muito pior e a vila inteira é obrigada a escutar. Quer o que? Mora sozinha, sem marido, sem um homem da família pra vigiar, faz “teatro”, que todo mundo sabe o que acontece no teatro, passa o dia fora de casa, de noite se pinta e volta cheirando a bebida, e cada vez com um homem diferente. Bato à sua porta e você me atende nua!
M – Quem disse que eu to nua! (ajeita o lençol que vai escapando) Seu Machado, eu pago as minhas contas e ninguém tem nada a ver com a minha vida sexual.
S – Pagava! Mas já começou a atrasar um dia aqui, outro ali. Já tá interferindo no funcionamento da vila. Por isso que eu estou no direito de falar, de cobrar. Você pode ter a vida sexual que quiser, só não traga “trabalho pra casa”! Isso é uma vila de família, aqui mora criança e gente idosa!
M – O senhor tá me desacatando, eu vou chamar a polícia.
S – Isso! Chama a polícia! Vamos falar sobre os seus... cigarrinhos... as suas ervinhas... que empesteiam a vila toda. Quem sabe eles não encontram alguma coisa proibida por aqui, né? Já vimos até camisa a favor do aborto secando no seu varal! À luz do dia!
M – A conta tá paga. O que mais o senhor quer comigo, Seu machado?
S – Essa é uma boa pergunta. Boa mesmo. (entrega a ela um tecido dobrado) Eu quero que você use isso na roupa.
M – (abrindo o tecido) Um triangulo rosa?
S – É isso que dá não frequentar as reuniões de condominio. A nossa assembléia decidiu etiquetar os moradores da vila. Queremos ensinar um exemplo sadio às nossas crianças. Quem não se encaixa na nossa definição de família, com as práticas sexuais tradicionais, precisa ser identificado. Ah, e depois das dez da noite, o portão vai ficar fechado. Como você é a única que entra depois desse horário, não é justo que toda a vila corra risco de assalto.
M – Mas seu Machado, isso não é constitucional...
S – Não me venha com leis. Nós aqui seguimos a lei de Deus, da moral e da família. A lei da pátria, só quando gente como você for obrigada a se mudar. As pessoas só falam de política e se esquecem do resto.
M – Que resto?
S – Dos viados, as piranhas, os ateus, os bêbados, os maconheiros, os desocupados e vagabundos, e principalmente, quem tem vida sexual livre, assim como você diz. Esses são os piores. Desonram a família, espalham a aids, fazem aborto ou então jogam os filhos fora pra serem adotados por uma família de viados, e aí essa criança foge de casa e vai cheirar crack na rua! E a culpa de tudo é dos artistas, que só ensinam mal exemplo pra nossa juventude e nossas crianças. Se pudesse eu proibia a televisão, proibia as novelas, o funk, pagode, rock, tudo. Falam mal da ditadura, mas naquele tempo gente assim não andava solta na rua, não. E é isso que nós precisamos trazer de volta. Eu quero fazer dessa vila um exemplo sadio, em defesa da família brasileira, pra que as nossas crianças possam brincar em paz na pracinha nessa manhã de sábado, sem maus exemplos. Porque essas crianças são o nosso amanhã, e ninguém que pense diferente vai poder se aproximar, pra não contaminar o resto do grupo.
M - Eu compreendo a situação, Seu Machado, mas... como é que eu vou andar com um triangulo rosa na roupa... (deixa cair o lençol) se eu estou nua?
(visivelmente incomodado, seu machado não consegue falar nem esboçar qualquer reaçao).
S – Cubra-se por favor. Dê-se ao respeito!
M – É exatamente o que eu to fazendo. O senhor não tem moral nem pra olha pra minha nudez. Se é gente como você que define quem tem que andar com esse triangulo rosa, eu prefiro andar nua de uma vez. Passar bem, seu Machado.
(anda até a porta)
S – Onde é que a senhora pensa que vai?
M – Comprar uma coca-cola. Eu tô de ressaca.
S - Mas assim? Hoje é sábado! As crianças estão brincando na praça!
M – Não se preocupe, seu Machado. A coisa mais pura que as suas crianças vão ver nessa manhã de sábado é a minha nudez.
(Abre a porta, o sol da manhã a ilumina e ela sai, gloriosa em sua nudez.)
FIM
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Leve-me Ao Seu Líder, de Ivan Fernandes
De Ivan Fernandes
Música de ficção científica (2001 – uma odisséia no espaço). Entram dois alienígenas. Olham em volta meio perdidos.
1 – Tem certeza que Saturno é aqui?
2 – O GPS disse que é aqui. O GPS não falha.
1 – Sei não. Saturno não tinha um anel em volta? Você lembra de ter passado algum anel? E as 9 luas? Só to vendo uma!
2 – Como você é detalhista! Desse jeito só vamos acabar a missão no próximo milênio! Eu quero sair da via láctea antes da hora do rush! Amanhã é feriado sideral e você sabe como aquilo fica cheio!
1 – É mesmo, é melhor a gente se apressar.
(vão sair do palco, mas são abordados por um flanelinha)
F – Ô patrão! Patrão! Tô aqui tomando conta, valeu? Podeixar solto!
1 – Veja! Um local!
2 – Mas o que ele tá dizendo? Acione o tradutor intergaláctico!
1 – O tradutor não reconhece a linguagem! Deve ser algum dialeto!
F – Nossa, esse carrão enorme ali atrás é o de vocês? Que marca é? É importado? Vocês tem muita coragem de andar com uma máquina dessas por aqui. Mas pode ficar tranquilo que comigo olhando, ninguém tira farofa. Só vou pedir a vocês um trocadinho pra vigiar o carro, pra garantir o leitinho das criança... e o pagamento é adiantado. Qualquer cinquenta conto tá bom...
2 – Parece que ele quer alguma coisa...
1 – Vou checar o procedimento de boas vindas padrão em Saturno. (checa. Estende as mão com os dedos em V, separados, igual ao Spock de Jornada nas Estrelas) Vida longa e próspera!
F – Ih, cumpadi, que caô é esse? Se não pagar e o carro aparecer arranhado, não vem reclamar depois..
2 – Acho que a saudação não funcionou muito...
1 – Não é possível! É a saudação clássica dos saturnianos!
2 – Ah não ser que o GPS esteja errado... (para o Flanelinha) Nobre alienígena, pode nos informar onde é que nós estamos?
F - Tão perdido? Logo vi, com essa cara de gringo... pra onde vocês tão indo?
1 e 2 – Saturno!
F – Onde? Nunca ouvi falar!
1 e 2 se olham desolados.
2 – Viu só? estamos perdidos!
1 – Então de onde você vem?
F – Do Turano! Olha, se vocês não acharem aí esse tal de Saturno, eu indico o baile lá do Turano que é o maior pancadão! Até os gringo perde a linha!
1 – Turano? Deixe-me olhar no guia. (consulta) Nenhuma referência! E agora? Toda a nossa missão está perdida!
2 – Perdida? Jamais! Vamos agir aqui mesmo, depois a gente bota no formulário que é Saturno. Eles não vão vir até aqui pra confirmar.
1 – Vamos seguir então. (para o flanelinha) Leve-me ao seu líder!
F – Como é que é, patrão?
2 – O líder aí desse Turano!
F – O dono do morro? Ih, aí complica... O homem não recebe ninguém assim sem avisar... e aí pode sujar pra mim... pra que vocês querem falar com ele?
1 – Nós somos representantes do planeta Klypton, situado na galáxia de Melnor, na saída à esquerda da via láctea.
2 – Estamos fazendo uma pesquisa pra saber como se vive aqui no seu planeta.
F – E essa pesquisa só pode ser com ele? Faz comigo mesmo!
1 – Você é um líder?
F – Eu? Bom, posso não ser um líder, mas assim mesmo lá em casa todos meus amigos, meus camaradinhas me respeitam...
(1 e 2 se olham, se consultam)
1 – Tá bom, vamos em frente, já tamos fodidos mesmo...
2 – Qual a fonte de poder do seu planeta?
F – Pô, essa é difícil, hein, patrão? Já saí da escola há tanto tempo que... Deixa eu pensar!
1 – (dando pista) Em alguns planetas, é a água...
F – Não, se ainda fosse cerveja...
2 – (dando pista) Em outros, é o ar...
F – Também não... Ah, já sei! É o carro!
1 – Aquilo que vocês usam pra se mover?
F – Um carro é muito mais que isso, patrão! Serve pra ostentar, pra tirar onda, pra fazer pega, pra ir a praia, pra ir pra night, pra correr na velocidade da luz...
2 – Então eles já tem velocidade da luz...
F - Pra comer mulher...
1 – (anotando) Carro serve para acasalamento da espécie...
2 – E todo mundo tem carro aqui?
F- Todo mundo não! Só alguém!
1 – O que é alguém?
F – Aqui tem dois tipos de gente. Alguém e ninguém. Quem tem carro, é alguém. Que não tem, é ninguém. Pro ninguém, tem um carro maior, quase do tamanho desse seu aí. Aí enfiam todos os ninguéns nesse carro maior, que vai parando de ponto em ponto pra levar todo mundo.
2 – E o ninguém pode se acasalar?
F – Poder pode, doutor, o difícil é conseguir! As fêmeas escolhem o macho pelo carro... como se fosse a plumagem do passarinho...
1 – Mas de onde a gente vem, só usamos o carro pra deslocamentos longos... de um planeta pra outro, de uma galáxia pra outra...
F – Ah, não! Aqui, quem tem carro usa até pra atravessar a rua. Imagina ser visto sem carro! Vai ser confundido com ninguém!
2 – De onde a gente vem, a preferência é de quem não tem carro.
F – Ah, mas aqui também! Preferência de se foder, de ir à merda, à puta que pariu, e de morrer atropelado. E é bem feito! Quem mandou se meter na frente do carro? Esse negócio de faixa de pedestre, é ditadura comunista!
1 – Mas então, o ninguém que não tem carro não tem direito a nada?
F – Mais ou menos. O carro é de vocês, a rua é nossa. E pra estacionar, tem que pagar.É aí que entra o meu negócio, patrão.
2 – Então quem é alguém, tem que pagar a você pra estacionar?
F – Pro ninguém aqui! Tão todos na minha mão! Até que eu junte dinheiro, compre um carro e vire alguém! Aí vou ficar na mão de outro ninguém!
1 e 2 se olham
1 – Já achamos o que precisávamos...
F – Agora só falta o adiantamento...
2 saca uma pistola de raios e imobiliza o flanelinha.
2 – Se os mais poderosos tem que pagar a ele, então ele é o mais poderoso...
1 - Rápido, leve ele até o nosso disco. Eu vou assumir o lugar. Ninguém vai perceber, e em breve, teremos dominado todo o planeta dos alguéns e dos ninguéns...
2 sai carregando o flanelinha congelado. Barulho de carro.
1 – Aí vem um alguém! Como é que ele falava mesmo? (imita) Ô patrão! Patrão! Tô aqui tomando conta, valeu? Podeixar solto! Só vou pedir a vocês um trocadinho pra vigiar o carro, pra garantir o leitinho das criança... e o pagamento é adiantado. Qualquer cinquenta conto tá bom...
FIM
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O REI DOS CORAÇÕES SOLITÁRIOS
De Ivan Fernandes
Música.
Jefferson – Radio Noturna, o último farol da madrugada. Vem aí o programa mais sensível do rádio brasileiro, com apresentação do Rei dos Corações Solitários, JEFFERSON CARLOS!!
Entra vinheta e o locutor agora canta em falsete:
J - “Je-ffer-son- Car-los!!”
Locutor volta a falar com sua voz normal.
J - Boa noite, eu sou Jefferson Carlos, o seu ombro amigo da madrugada. Tá na fossa? Tá carente? Liga pra cá. Vamos conversar. Jefferson Carlos entende o que se passa em seu coração. Eu sou o apoio quando ninguém mais te suporta, o ouvido compreensivo quando ninguém mais te escuta. Liga pra cá. Pede uma música. Uma música que te fez sorrir um dia, pode te fazer sorrir de novo.
Sobem os primeiros acordes de “Are you lonesome tonight?”, de Elvis Presley.
(toca o telefone)
J -Mas parece que já temos uma chamada, uma primeira alma solitária.
ROSE - Boa noite, Jefferson Carlos!
J – Mas você de novo, Rose! Eu não te pedi pra dar um tempo? Você tá ocupando o espaço de algum ouvinte novo.
R - Ninguém ouve esse programa, você só coloca essas velharias pra tocar. Depois reclama. Você tem que tocar Ivete, Anitta, já te disse mil vezes.
J - E o dono da rádio disse duas mil. Vocês não entendem que eu sou como um pajé. Eu sou um médico de almas. E remédio não tem gosto bom. O que eu toco aqui é pra salvar vidas.
R – Então, Jefferson, você precisa salvar a minha vida.
J – Mas toda noite! Todo fora que você leva, liga pra cá.
R – Mas eu preciso desabafar! Mais uma vez fui iludida por um canalha!
J -- (suspira) Haverá outro alguém nessa madrugada sem fim, outro alguém nesse vasto mundo, que ainda precise de mim? Ô produção, me encaminha outra chamada, por favor!
R - Que produção? Vai dizer que esse seu programa tem produção?
J - Não temos, é verdade. Aliás, se você tiver algum contato pra indicar...
R – Sabe que eu tenho? Conheci um cara que trabalhava com produção e... não, deixa pra lá. Esse também era canalha. Por que é que todo homem é canalha, Jefferson? Não tem um que preste!
J – Rose, não aguento mais essa ladainha! Quer parar de se fazer de vitima? Você tem que entender o verdadeiro motivo pelo qual você não dá certo com os homens!
R – Mas eu descobri, Jefferson. O verdadeiro motivo é que eu sou um vinho caro, que os homens não sabem degustar, porque tão acostumados com pinga barata. Os homens não tão preparados pra uma mulher assim independente, madura, resolvida.
J – Mas quem disse que você é vinho caro?
R - Como assim? Eu me acho um vinho caríssimo!
J - E eu me acho o Jo soares! Mas eu, com todo meu talento, to conversando aqui com você nessa rádio escrota, enquanto aquele gordo apresenta um talk show pro Brasil inteiro. A gente acha que é vinho caro, mas não passa de pinga barata, meu bem. A verdade sobre nós está fora de nós. Você quer saber a verdade sobre você, do ponto de vista de um homem? Quer?
R – Quero!
J – Você tá sozinha porque é chata.
R – Jefferson!
J - Você é chata. Desculpa. Alguém precisa te dizer. Seria melhor uma amiga, mas normalmente amiga de mulher chata também é chata, então não percebe. Rose, homem não tem esse negócio de mulher perfeita. Aceitamos todo tipo de mulher. Independente, moderna, conservadora, evangélica, burra, pobre, feia, cafona, acima do peso, sem depilação, com celulite, velha. Menos a chata. A chatice é a única coisa que o homem não consegue lidar. Esse aviso é um serviço de utilidade pública. Você tá sozinha porque é chata.
R – Eu tô sozinha porque homem tá em falta no mercado!
J - Como tá em falta? Em todo lugar tem homem disponível. Pode não ser o nosso melhor. Temos muitas áreas pra cobrir. Mas algum representante nosso terá. Até no vagão das mulheres do metrô, temos gente trabalhando a situação. Agora mesmo, alguém do seu tipo deve estar ouvindo o programa. Qual é o seu tipo?
R – Ah, nada demais. Inteligente. Que fuja do óbvio e esteja sempre me surpreendendo. Antenado, que me atualize do que vale a pena. Bem sucedido profssionalmente. Não precisa ser rico, mas tem que viver com conforto, com viagens, plano de saúde, parto na perinatal, escola particular pras crianças, essas coisas. Que saiba martelar, furar, abrir pote, cozinhar, faxinar e passar roupa. Que seja fodão em tudo, seguro em tudo, sempre. E muito bom de cama, que me coma durante horas seguidas todas as noites. Ciumento sem ser machista. Que saiba quando eu quero que ele me prenda, e quando eu quero que ele me deixe solta. Que entenda sempre tudo que eu quero sem eu precisar falar. Que segure todas as minhas barras. Corpo em forma, sem barriga. Que não beba, não fume, tenha uma alimentação saudável, de preferencia vegetariano. E fiel até em pensamento.
J – Se tiver algum homem com todas essas características, entre em contato com a produção que até eu vou querer! Mas o que você oferece em troca, Rose?
R – Como assim?
J – Vamos sair do vinho e falar de carro, que homem gosta mais. Uma Ferrari exige um investimento muito grande, mas não dá nenhum problema na manutenção. A chatice na manutenção é o único defeito do carro que faz o homem perder a vontade de dirigir. Você reclama de tudo? Vive de mau humor? Nunca tá satisfeita? Implica com as manias dele, implica com os amigos dele, tenta acabar com o futebol pós-expediente da quarta-feira?
R – O futebol é a desculpa dos canalhas. Sei bem como são essas peladas.
J – Rose, se os homens são canalhas, é por uma questão de sobrevivência.
R – Você tá é defendendo a classe.
J – Vocês só valorizam os canalhas. Só os canalhas se dão bem. Sabe quem é o homem sincero e apaixonado? Aquele gordinho tímido que senta na última mesa do escritório e perde o ar quando você passa.
R – O Weverton??
J - Esse gosta de você. Mas você valoriza esse?
R – Não! Ele não tem os pré-requisitos.
J - Claro que não! Você quer o chefe, o macho alfa, que todas as outras meninas querem. Só que esse é o canalha. E quanto mais ele descarta vocês, mais vocês correm atrás dele. De tanto assistir os canalhas se darem bem, o romântico acaba aprendendo que mulher só respeita o canalha, só se apaixona pelo canalha, só chora pelo canalha. E aí, ou ele se joga do viaduto, ou aprende a ser canalha pra sobreviver.
R – Não é qualquer tipo de canalha! O cara pode ser canalha com todas as outras mulheres, mas eu tenho que ser a mulher que transformou ele.
J - Transformar? Criar um novo homem? Você não viu Frankestein? O Frankestein foge do cativeiro no final. E você termina sozinha, com suas bolsas caras, com suas amigas descoladas, reclamando da morte da bezerra, destilando veneno contra os homens porque nenhum tem o grau de perfeição exigido na manutenção do seu vinho caro. Tá sozinha porque é chata!
R – Nunca mais eu vou ouvir o seu programa!
J - Não é o fim do mundo, Rose. É só aprender a relaxar, se divertir, divertir o seu homem. E parar de encher o saco. Cai na real. Ok, Rose? A Rose desligou, a linha liberou, liga pra cá, vocÊ também! Eu sei que tem mais alguém aí ouvindo. Agora uma musiquinha pra machucar os corações!
(musica final)
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Manaus - De Ivan Fernandes
Quarto de hotel com cortinas fechadas. Luiz assiste futebol na tv. fuma.
Entra Paloma, abrindo a cortina. Espanta a fumaça.
PALOMA - pelo amor de Deus, Luiz, isso aqui tá parecendo são Paulo! Tá um sol maravilhoso lá fora! Deixa o dia entrar nesse quarto! (abre a janela)
LUIZ - Fecha a janela, amor! Só consigo viver em Manaus com ar condicionado. Deixa o calor do fogo do inferno pro dia em que eu tiver que pagar meus pecados!
PALOMA - eu não acredito que a gente veio até a floresta amazônica pra você se trancar aqui dentro.
LUIZ - Os mosquitos daqui são maiores do que os cachorros! São maiores do que os pivetes! Eu cheguei na janela e um mosquito quis me assaltar com uma arma!
PALOMA - Nem uma árvore você vai ver?
LUIZ - árvore eu vejo na floresta da tijuca!
PALOMA - como se vocÊ fosse à floresta da tijuca!
LUIZ - eu fui, quando eu era criança! Árvore é tudo igual! Quem viu uma, viu todas!
PALOMA - é sempre assim! Na nossa lua de mel no litoral da Bahia, você voltou sem um grão de areia! Nem apanhou sol!
LUIZ - Sol dá cÂncer. Depois vocÊ me mostra tudo por fotografia.
PALOMA - Não é a mesma coisa. Pô, Luiz, eu preciso dividir as minhas experiencias das viagens com vocÊ! senão de que adianta a gente ser casado?
LUIZ - Eu concordo com a dorothy. There’s no place like home!
PALOMA - pois eu vou acabar com isso! Se Maomé não vai à floresta, a floresta vem a Maomé! Pode entrar, Pajé!
Entra um índio a caráter.
LUIZ- quÊ isso, Paloma?
PALOMA - Esse é o Pajé. Eu contratei ele pra vir aqui. Pra você pelo menos ver um índio de verdade. Pajé, esse aqui é o meu marido.
PAJÉ (erguendo a mão em cumprimento indígena) – Hau!
L (ergue a mão meio sem graça enquanto sussurra pra mulher) – “Hau” não é cumprimento de índio de faroeste?
PALOMA - Ah, mas eles são bem modernos! A primeira coisa que eu vi quando entrei na aldeia deles foi a bandeira do Visa! Tem até máquina de coca cola!
Barulho de lata de coca se abrindo. Foi o pajé que pegou uma no frigobar. Ele ergue a lata, em saudação.
PAJÉ – Hau!
PALOMA – Faz a dança da chuva, Pajé!
LUIZ – Pra que? Você quer que chova dentro do quarto?
Pajé começa uma estranha dança da chuva.
LUIZ – Pajé, esquece a dança da chuva. E aquele cachimbo da paz, trouxe?
PALOMA – Já vai você desvirtuar a nossa experiência mística indígena!
LUIZ – Pelo contrário! Eu tomo até ayahuasca, se ele tiver! Pajé, tu já leu Castañeda?
PALOMA – Esse é o seu problema, Luiz! Você só conhece o mundo pelos livros! Mas eu quero viver no mundo real! E preciso de um marido que viva no mundo real! Senão vou sair por aí e acabar namorando um boto! E não reclama se eu voltar grávida!
LUIZ – Tá bom, amor, você venceu. Vamos conhecer a Amazônia.
PALOMA – Assim é que se fala. Toma o protetor solar. E o repelente de mosquito. E a cÂmera. E a carteira. E a garrafa de água. E a bolsa pras lembrancinhas. E segura também a minha necessaire.
LUIZ – (pegando tudo) Adoro passear...
PALOMA – Vamos correr que eu marquei um guia pra nos levar pra uma praia de rio que tem uma lama que a gente passa no corpo e faz milagres na nossa pele!
LUIZ – Vou ter que me lambuzar todo de lama? Que emocionante!
PALOMA – Te amo meu amor!
LUIZ – Eu também! É muito amor!
(saem, sem perceber que o índio ficou. Este, também surpreso, anda pelo quarto de hotel. Olha pra tudo com aprovação. Serve-se no frigobar.Senta na cama ou poltrona e solta um suspiro de conforto. Estica as pernas. Pega o controle. Muda o canal. Entra som de filme antigo, o Mágico de Oz, com Dorothy cantando “Somewhere Over The Rainbow...” O índio pega seu cachimbo e fica assistindo embevecido.)
ÍNDIO – Paradise...
FIM
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A TRAIÇÃO
De Ivan Fernandes
Luz sobre Alessandra, de óculos escuros e echarpe cobrindo quase todo o rosto. Anda pelo palco como se temesse ser vista. Se aproxima do canto do proscênio e se dirige a uma portaria invisível. Tira da bolsa um cartão de crédito.
ALESSANDRA – (quase sussurrando) Um quarto, por favor. De fundos. Meio período. (recebe uma chave, olha para um lado e pro outro, e se esgueira pra fora de cena.)
Entram em cena Alípio e um detetive. Eles partilham um binóculo.
D – Acredita agora?
ALÍPIO – Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos... Mas pode ser um engano... tem certeza que é mesmo um motel? No letreiro tá escrito hotel...
D – Hotel Sodoma e Gomorra! Alguém se hospeda inocentemente num hotel chamado Sodoma e Gomorra?
ALIPIO – Isso parece um pesadelo... não pode ser verdade...
D – Ela pagou com cartão, o senhor viu? Eu desenrolei com o porteiro e consegui o extrato desse cartão: veja quantas vezes! média de duas por semana, às vezes 3!
ALIPIO – Por isso o cartão tá estourado! E eu achando que tavam me roubando no banco!
D – Tem alguém roubando o senhor, mas não é no banco, é lá dentro! Vamo lá dar o flagrante!
ALÍPIO – Não, peraí! Deixa eu ver as fotos de novo! (detetive mostra) Tá vendo? só aparece ela e mais ninguém! Isso tudo deve ser algum mal entendido!
D – Olha, seu Alípio, eu já fiz o meu trabalho, já descobri, já fotografei, já trouxe o senhor aqui. Agora, se o senhor quer continuar a ser corno, o problema é seu. O senhor me paga e eu vou embora.
ALIPIO – Não, peraí, tá bom! Vamos fazer assim: a gente chega na porta, e se ouvir alguma coisa suspeita, dá o flagrante!
(se movimentam até a portaria. O Detetive mostra um distintivo e eles entram. Param na porta do quarto. O detetive, com gestos exageradamente policiais, se posiciona na tocaia e sinaliza a Alipio a posição que ele deve ficar. Alípio não entende e o detetive tem que posicionar ele. finalmente, ouvem o barulho que vem de dentro do quarto. É um gemido fundo, feminino – deve dar a impressão de prazer, mas não a imitação de um gemido sexual)
D – Tá ouvindo? Acredita agora? Vamos dar o bote!
(o detetive mete o pé na porta. luz sobre o quarto onde está alessandra. Ela está na cama, vestida, mas surpreendida, cobre-se com o lençol. Não há ninguém com ela.)
ALESSANDRA – Alípio? O que você tá fazendo aqui?
ALIPIO (procurando pelo quarto) – cadÊ esse safado, esse vagabundo?
ALESSANDRA – Quem?
ALIPIO – O homem! Onde vocÊ escondeu o homem?
ALESSANDRA – Calma alípio! Não é o que vocÊ está pensando!
(o detetive continua procurando o outro homem pelo quarto)
D – No banheiro não tem ninguém! Só pode estar debaixo do lençol!
ALESSANDRA - (desesperada, agarra-se no lençol. Grita) Não! Não!
(detetive e Alípio, com custo, arrancam o lençol que Alessandra segura. Embaixo do lençol tem vários pacotes de cigarro)
ALIPIO – O que significa isso, Alessandra? O que você anda fazendo pela minhas costas? (com desprezo absoluto) Fumando??
ALESSANDRA – Calma, meu bem, eu posso explicar...
D – Doutor, embaixo da cama tem um isqueiro. E um cinzeiro recém-usado.
Alípio pega, com nojo, uma guimba de cigarro.
ALIPIO – Mas vocÊ me disse que tinha parado de fumar há um ano atrás!
ALESSANDRA – EU não! VOCÊ é que me parou! Eu nunca tive escolha! Ou parava com o cigarro ou o casamento acabava! Não foi assim que você colocou as coisas?
ALÍPIO – Mas é pelo bem da sua saúde! E da minha, que tava sendo fumante passivo! Você sabia que pelas estatísticas...
ALESSANDRA – Pelo amor de Deus, as estatísticas de novo não! eu prefiro a separação! Aliás eu prefiro a morte! Me dá meu cigarro aqui!
ALIPIO – De jeito nenhum!
Lutam pelo cigarro. A campainha toca. eles param em expectativa. o detetive vai atender e volta com big macs e garrafas de coca.
D – O entregador disse que já tava pago.
ALIPIO – Eu quero a verdade, Alessandra: você pediu a opção sem glúten?
ALESSANDRA – Extra gluten!
ALÍPIO (como se recebesse uma punhalada) – Nãããão! E a nossa alimentação saudável?
ALESSANDRA – Aquelas folhas sem gosto que você compra na feirinha orgânica? Aquela merda daquele suco de luz? Aquela pizza de farinha integral sem queijo por causa da lactose? Enfia no cu, Alipio! Me dá meu big mac com 4 carnes!
ALIPIO – Me responde: o curso de yoga e bioenergética que eu paguei pra vocÊ, você tá fazendo?
ALESSANDRA – Não! Vou ao cinema e me empanturro de pipoca com manteiga!
ALIPIO – Você quer se matar?
ALESSANDRA – Não, VOCÊ quer me matar! De fome! E de tédio! Vai viver a sua vida, Alípio, sua vida saudável, sem carne, sem fumaça, sem colesterol, sem gluten, sem álcool, sem açucar, sem afeto! Sabe o que você vai conquistar com tudo isso? O direito de morrer cheio de saúde!
ALIPIO – Eu preferia mil vezes que você estivesse aqui com um negão! Ou melhor, com 4 negões mais bem dotados do que eu! Eu até entenderia! Mas essa traição passou de todos os limites! Pode procurar o seu advogado! Adúltera! (paga o detetive e sai)
ALESSANDRA – Pode sair! Eu ainda tenho duas horas de quarto e quero aproveitar cada segundo com todos os meus vícios!
Detetive acende um cigarro.
ALESSANDRA – Além de me denunciar ainda vai filar meu cigarro?
DETETIVE – Todos os detetives fumam. É uma obrigação estética. Essa fumaça em volta da gente aumenta nosso glamour.
ALESSANDRA – Tá bom, então pega seu cigarro e me deixa em paz.
DETETIVE – Nada disso. Eu sou um detetive que cumpre meu trabalho até o fim. E ainda ficou faltando cumprir uma vontade do seu marido.
ALESSANDRA – Que vontade? Ele já não pagou seus serviços?
DETETIVE – Mas disse que preferia que você estivesse aqui com um negão bem dotado! Na falta de um, o meu dá pro gasto!
(pula na cama, apagam a luz)
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CAPITALISMO HUMANISTA
De Ivan Fernandes
Jurandir está em sua mesa de negócios, desesperado. Os vários telefones tocam.
J – Meus aviões nunca voaram tão baixo! Dívidas! Juros! Dividendos! Contas! Recibos! Impostos! É só isso que querem de mim! (atende um telefone) alô! Eu já disse que preciso de mais um tempo pra pagar! (desliga. Atende outro) Alô! É uma má fase da empresa, só isso! (desliga. Atende outro) Me deixem respirar! (desliga. Toca a campainha) E mais essa! Além de ligar, eles vem bater na minha porta? (grita) Não leram o letreiro? Fechado por tempo indeterminado! (entram seguranças que começam a levar os telefones e o que houver de cenário) Ei! Peraí! Quê isso? Vocês não podem fazer isso! Eu já disse que vou pagar!
Entra Gleidson. Tipo magnata bem vestido.
G – Tarde demais. Foi decretada a falência da sua pequena empresa de passagens aéreas e turismo Jurandir Tur Ltda...
J – Seus urubus! Nem esperam o cadáver esfriar e já vieram ficar com os restos?
G – Calma meu amigo. Nem tudo são más notícias...
J – (agarrando-se aos últimos objetos) Onde estão os papéis da falência? Cadê a ordem judicial?
G – Mas é incrível. Vejo que não lembra de mim. (puxa os cabelos pra trás e o rosto pra frente) Dá uma boa olhada. Não lembra mesmo? Hein? Talvez os papéis ajudem. Olhe. (entrega os papéis)
J – Banco administrativo Gleidson? Esse nome... Gleidson...
G - Vinte anos atrás eu entrei por essa mesma porta...
J – ... pedindo uma passagem pra Nova York de graça! Lembrei! Então é você! Não reconheci porque...
G – Porque eu era um pobre morto de fome e agora sou proprietário do Gleidson Bank Inc.!
J – A vida foi muito camarada com você!
G – A vida não, Jurandir! Você! Você investiu em mim quando eu não passava de um rapaz pobre com muitos sonhos e um diploma de curso de inglês! Diploma com bolsa, senão nem isso! Eu sabia que minha única chance de ficar rico era sair desse país. Ir pra Nova York! Onde o dinheiro acontece! O novo império romano! Mas com que dinheiro? Fui a mais de 50 agências de passagens áereas pedir uma passagem. Não queria de graça. Era um investimento. Você foi o único que acreditou em mim. Por que?
J – Ora... aquela era uma boa época, a empresa tava bem... uma passagem a mais ou a menos não ia fazer muita diferença... e você... eu me vi em você... um jovem que ia fazer o que eu não tive coragem... passei a vida levando os outros pra viver no exterior, mas eu mesmo fiquei aqui... e eu vi nos seus olhos tanta vontade de vencer...
G – Exatamente, Jurandir... vontade de vencer! Foi assim que eu desembarquei nos States! Com vontade de vencer! Comecei lavando banheiro, cortando grama, passeando com cachorro de madame. Tudo que eu ganhava, investia! Em pouco tempo, já era um dos principais investidores de Wall Street. Montei esse banco especializado em lucrar com a massa falida das empresas. Fiquei bilionário. Quase esqueci o meu país. Teria esquecido totalmente de onde eu vim, família, amigos, tudo, se não fosse um pequeno detalhe: o homem que me ajudou. Aquele homem que, vinte anos atrás, deu uma passagem de avião a um menino que ele nem conhecia, sem pedir nada em troca. Você, Jurandir. Quando a papelada da sua falência chegou ao meu banco, eu vi que era hora de voltar pra minha terra e demonstrar toda minha gratidão...
J – (aliviado) Deus existe...
G – Por causa desse ato desinteressado, uma simples passagem de avião, pude acumular uma fortuna incalculável...
J - (repete deslumbrado) Incalculável...
G – Entendeu agora, Jurandir? Eu não vim aqui por causa da falência... Vim aqui porque tenho uma surpresa pro senhor... a chance de retribuir o que o senhor fez por mim...
J – (chorando) Retribua! Retribua!
G – Rapazes! Tragam o presente!
(os seguranças entram com muitas flores)
J – Ora, não precisava! Podemos ir direto ao ponto!
G – Esse é o ponto, Jurandir! Receba essas flores do fundo do meu coração! Muito obrigado! Tem até um cartãozinho, olha!
J – Mas... mas... e a falência?
G – Não se preocupe... vou administrar sua massa falida como se fosse minha!
J – Mas eu achei que você ia me salvar da falência!
G – Salvar? Mas seu Jurandir! Isso seria ir contra mim mesmo! Meu banco vive pra lucrar com a falência dos outros! Eu não posso ir contra minha natureza! Além do mais, essas são as regras do sistema! Se você perde, vai a falência! Se eu salvo o senhor, estou ajudando a derrubar o capitalismo! O livre mercado e a livre concorrência! O sistema que mantém o planeta girando e o sol brilhando no céu! Não, seu Jurandir! Jamais! Tente de novo e não erre da próxima vez!
J – Mas... além disso essas flores são de plástico!
G – Flores de verdade morrem em dois, três dias no máximo. Essas flores de plástico são eternas como a minha gratidão ao senhor! E além disso o plástico favorece as ações da minha empresa Gleidson Plastic Corporation!
J – Pois pegue o seu plastic corporation e enfie no cu! Eu vou te mostrar o que fazer com essas flores! (atira as flores em cima de Gleidson e parte pra cima dele. os seguranças o seguram e tiram de cena)
G – Ingrato! Orgulhoso! Tem gente tão orgulhosa que não consegue nem ter a humildade de receber um gesto de gratidão! Não se preocupe, eu guardo as flores pro seu velório! Pra gente assim é mais fácil receber um gesto de remorso depois de morto do que um gesto de gratidão em vida! (aspira o perfume das flores e vai saindo) Até o cheiro dessas flores parece de verdade!
A Vida te Vira do Avesso - De Ivan Fernandes
Jorge entra em casa, de terno e pastinha.
J – Querida, cheguei!
Aparece Wilma segurando uma mala. Joga as malas aos pés dele.
W – Suas coisas, Jorge. Já me dei ao trabalho de embalar.
J - Quê isso, Wilma?
W – Meu computador quebrou. Precisei usar o seu.
J – e o que isso tem a ver com as minhas coisas dentro de uma mala?
W – Eu digitei uma letra e sem querer abri um atalho no seu computador. O atalho da pornografia que você usa.
J – Tudo isso só por causa de pornografia? Ora, meu amor, quê isso? Todo mundo assiste pornografia. A pornografia é sagrada dentro dos lares mais santos.
W – O seu site era de pornografia gay. (pausa)
J – Deve ter sido uma página que abriu por acaso. Por engano.
W – (entrega a ele uma longa folha de papel) Esse é o histórico dos seus acessos. Me dei ao trabalho de imprimir. O mesmo engano aconteceu mais de 80 vezes.
J – Deve ter sido outra pessoa que usou.
W – Só nos dois moramos aqui, Jorge.
J – E o Valdir?
W – O nosso gato?
J – Vive andando em cima do teclado, aperta uma tecla e... ou então algum vizinho roubando nosso wi-fi, inteferiu no computador, sei lá.
W – Ou então você é um gay enrustido que tem vivido comigo todos esses anos.
J – Gay por que? Eu nunca transei com homem nenhum. São só vídeos!
W – É a mesma coisa! Quem assistiu pornografia gay é o que? Hetero?
J – Olha aqui: (tecla o computador) eu também assisti pornografia sadomasô. Isso me torna sadomasô? Eu também assisti pornografia lésbica. Isso me torna lésbico? Eu também assisti pornografia com orgias. Isso me torna um jogador de futebol?
W – O que você quer provar? Que além de bicha, é um sujo tarado pervertido?
J – O que define quem é gay? Não é a pessoa que ama e transa com homens? Que vive uma vida gay na realidade?
W – Claro que não. É o fato de ter tido um pensamento, uma fantasia gay. Isso já te torna gay.
J – Então todo homem é gay. Porque não existe um homem que nunca tenha tido nenhum tipo de experiencia ou pensamento gay. Nem o Malafaia escapa.
W – Claro que tem. Tem muito macho por aí.
J – Não existe macho. Nem o superhomem é macho, que aquele cabelinho e aquela lycra azul coladinha no corpo não enganam ninguém. Quer ver? O cara que fez uma meinha no colégio com 8 anos e hoje é pai de família é o que?
W – Gay.
J – O cara que um dia na vida toma um porre monumental numa festa e acorda com outro homem na cama?
W – Gay.
J – O cara que ganha um fio terra da namorada é o que?
W – tua cota gay tá aumentando...
J – Mas se um gay sente atração por uma determinada mulher e transa com ela, vira hétero?
W – Continua gay. A opção sexual, uma vez escolhida, não tem mais volta.
J – Então um gay pode ter uma experiencia hetero e continuar gay, mas um hetero não pode ter uma experiência gay e continuar hetero? Agora, se uma mulher teve uma experiencia gay no colégio, com uma amiga...
W – Mulher é diferente. A gente pode passar por uma experiência dessas e voltar intacta. Vocês homens até fantasiam com isso. Mas homem não. Um homem que tem uma experiencia gay perde uma coisa que não volta nunca mais. Pelo menos aos olhos de uma mulher.
J – Um puta dum preconceito, isso. As mulheres, os gays, todos brigam pra mudar a visão da sociedade, mas querem que os homens continuem carregando essa mentira da macheza até o fim dos tempos? Não dá pra pôr um rótulo na sexualidade das pessoas. Todo mundo tem áreas de sombra, coisas que pertencem à imaginação, à fantasia. Na fantasia ninguém manda.
W – Na sua, porque na minha mando eu, meu filho. E não tem nenhuma aberração na minha cabeça.
J - E você vai me dizer que nunca teve um pensamento ou fantasia diferente da vida que você vive normalmente? Tudo que você fantasia é o que você vive na vida real? Nunca fantasiou um estupro, uma curra com cavalos, um anão hermafrodita?
W – Claro que não! Eu sou normal! E transparente. E ponha-se daqui na rua, seu viadinho!
J – Tá bom, eu vou. Mas eu desejo que os seus pensamentos mais obscuros se tornem realidade e virem sua vida do avesso. (pega a mala e sai)
W – (sozinha) Antes só do que mal acompanhada...
(entra o pai de Wilma)
P – É o que eu sempre te disse, filha...
W – Pai? O que você tá fazendo aqui?
P – Você me chamou, ué.
W – Eu? Quando?
P - Você sempre desejou esse momento... (tira o paletó)
W – Como assim?
P – Eu não fui seu primeiro príncipe encantado? Você não dizia que quando crescesse ia ser minha namorada?
W – Quando eu era criança...
P – Conversa. Não fui eu o modelo pelo qual você mediu todos os homens da sua vida? Você não sonhava com um mundo onde só existisse nós dois?
W – Mas era só uma fantasia...
P – É a mesma coisa. Ter uma fantasia de incesto já te torna incestuosa... (começa a tirar a gravata)
W – Peraí! Mas isso não pode acontecer na vida real!
O pai – Filha, agora suas fantasias mais obscuras viraram realidade... bem vinda ao avesso da vida... (beijam-se. Luz em fade)
***
(Música: London, London”)
AQUARELA DO BRASIL
De Ivan Fernandes
Jungle Boy e Mary entram no escuro.
JUNGLE BOY — That’s the way. Come on!
MARY — It’s... dark!
JUNGLE BOY — Don’t be afraid, come on... Aw!
MARY — what’s up?
JUNGLE BOY — Nothing... There was a fuckin stone in the middle.
MARY — There was a fuckin stone in the middle. In the middle there was a fuckin stone. There was a fuckin stone in the middle. In the middle there was a fucking stone…
JUNGLE BOY — Are you stoned? Do you need to be repeating? Wow, my leg... Where’s the light? I always miss the bottom. Oh, here!
(Acende um abajour e o ambiente se ilumina. É um porão com uma espécie de altar da cultura brasileira, com várias imagens e símbolos da nossa música, futebol, etc.
À direita, uma pequena varanda com vista para o Tâmisa. )
JUNGLE BOY — Welcome to my nightmares!
MARY — Wow... such a wonderful place... Just for you! What’s that?
JUNGLE BOY — That’s where I came from, baby.
MARY — (rindo) Really?
JUNGLE BOY — That’s why they call me the Jungle Boy.
MARY — You’re from the jungle? Come on! You look like an European.
JUNGLE BOY — European? You people are like big walls with wire fences. Nobody knows no one. In my place, everybody talks to everybody.
MARY – I never saw you talking with anybody else.
JUNGLE BOY – I’m not from “civilization”.
MARY — you’re a crazy freak, you know that?
JUNGLE BOY — And you like it.
MARY — (ri e abaixa a cabeça, envergonhada.) Yes I do...
(Ele a beija na boca, um beijo curto e rápido. Se olham e riem. Mais à vontade, se beijam de novo.)
JUNGLE BOY — Let’s talk about business. (retira de alguma gaveta várias drogas embaladas.) This is your traveller’s guide! (primeiro saquinho) Now this is very good stuff. (Segundo saquinho) This is different, but equally good. Both are the same, friend prices - but this one...(aponta para o ultimo saquinho) ...this one's a little more expensive. But when you shoot it, you'll know where that extra money went. Nothing wrong with the first two. It's real, real good shit. But this one's a fuckin' madman.
MARY — I want the best.
JUNGLE BOY — Now an advice: take it slow. This is not a candy, ok? And how you gonna pay for that, honey?
(Mary pega no pau dele.)
JUNGLE - Wise girl. (pega nos peitos dela) Wow, you’re hot. (abraçam-se)
MARY — (no ouvido dele) Feliz aniversário.
JUNGLE BOY — What?
MARY — Pode falar português.
JUNGLE BOY — Como você sabe que hoje é meu aniversário?
MARY — Intuição feminina. Você disse que tava pra fazer aniversário. Disse que era de câncer. Só podia ser hoje. Amanhã já é leão. (canta, imitando Marylin Monroe e iniciando um strip) Happy birthday to you... Happy birthday to you...
JUNGLE BOY - Que porra é essa?
MARY — Que foi?
JUNGLE BOY— Eu tô achando que tu é sujeira. Quem foi que te trouxe aqui? Hein? (torce o braço dela)
MARY – Tá me machucando...
(ele abre a blusa dela, à procura de microfones, escutas policiais. Não encontra nada. solta ela.)
JUNGLE BOY – Tá bom, desculpa, vai. É que a polícia aqui funciona de verdade. Não reconheci o seu sotaque.
MARY - Eu quase nunca falei português fora de casa. Meu pai era refugiado político.
JUNGLE BOY – Desde que meu visto venceu não falo com ninguém. Ninguém, amigos, família. Deixei até uma namorada. Já deve ter se casado.
MARY – Meu pai foi um dos únicos refugiados que nunca aceitou a anistia, nunca voltou.
JUNGLE BOY – Inteligente o seu pai.
MARY – Você nunca pensa no que deixou lá?
JUNGLE BOY – Eu saí pensando em trabalhar, juntar dinheiro. Meus pais pensam que é isso que eu tô fazendo. Eu vou acabar morto no metrô igual aquele outro brasileiro. Aí eles vão finalmente ver o filho aparecendo no jornal. Mas não da maneira que eles imaginavam.
MARY — Meus pais não voltaram pra que eu pudesse estudar aqui. Eu passo todas as noites por aqui, trocando uma chupada por uma dose. Um dia encontro uma versão moderna do Jack Estripador. Aí eles vão realmente saber o que é que eu tava estudando.
(Pausa. Ficam ali por um instante, desprotegendo-se.)
JUNGLE BOY – Esse rio aí na frente sai no mar, e depois do mar vem o Brasil. Sempre que eu olho pra esse rio penso nisso.
MARY – Se fosse simples assim. (Pausa) Eu aprendi a cantar uma música do Brasil. (pausa) Você ainda quer transar comigo? Por que eu prefiro transar antes.
JUNGLE BOY – Canta a música. A música que você aprendeu.
MARY – “I'm wandering round and round, nowhere to go
I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky (2x)”
I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I'm wandering round and round, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky (2x)”
JUNGLE BOY – Isso não é uma música brasileira.
MARY – É sim. O cara que escreveu é brasileiro. Ele escreveu aqui, no exílio. Meu pai que me ensinou essa música.
JUNGLE BOY – Você não conhece “Aquarela do Brasil”? (cantarola) Brasil... Pra mim...
MARY – Não. Mas eu já cantei, então valeu, né? É como se eu tivesse pago, né? (ele joga um saquinho pra ela) É uma pena eu não conhecer aquarela do brasil. Mas eu achei que você é que ia me mostrar coisas de lá. (vai saindo)
JUNGLE BOY – Como você disse que se chamava?
MARY – Não disse. Mary. Maria.
JUNGLE BOY - Sabe por que essas fotos tão aí, Maria? Pra me lembrar. Tô aqui há tanto tempo que não lembro mais. (pausa.) Não precisa ir embora senão quiser. (pausa. Ela fica. Ele abre uma garrafa. Olham pela janela.) The river... quem sabe um dia não nos leva de volta...
MARY PAIN – Se você me ensinar a música, eu posso até aprender.
JUNGLE BOY - (cantarola e ela vai repetindo cada verso)
Brasil
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Ô Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingá
Ô Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Brasil! Brasil!
Prá mim... prá mim...
Meu Brasil brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Ô Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingá
Ô Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Brasil! Brasil!
Prá mim... prá mim...
(luzes vão sumindo)
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Música: Como Vovó Já Dizia, Raul Seixas
UM TAPA NA CHAPEUZINHO
De Ivan Fernandes
A vovó em casa, com som alto (Pink Floyd). Batidas na porta.
V - Quem é?
CH – (de fora) Sou eu, vovó!
V - Espera só um segundinho. (bota um óculos escuros) Pode entrar!
(entra Chapeuzinho Vermelho)
CH - Ai, vovó, que som alto! (abaixa)
V - Que surpresa, Chapeuzinho...
CH - Mamãe pediu pra trazer esses doces.
V - Corta esse papo furado. Sei muito bem que a minha filha te manda aqui pra me espionar. Ela acha que eu não sei cuidar de mim sozinha.
CH - E por acaso sabe? Olha só, vovó, mas que bagunça essa casa! Os lençóis todos pelo chão... (começa a arrumar a casa) Isso é um perigo, se a senhora tropeça...
V - Deixa isso aí, Chapeuzinho. Amanhã a Gata Borralheira arruma. A madrasta dela liberou a pobrezinha pra fazer um bico de diarista pra mim.
CH - A senhora lembrou de tomar todos os remédios?
V - Não, minha filha, minha memória tem andado péssima, não sei o que pode ser isso.
CH - E me diga, pra que esses óculos escuros tão grandes dentro de casa, vovó?
V - Porque acabou o colírio, Chapeuzinho. Essas luzes todas fazem mal aos olhos. Mas esses doces chegaram em boa hora. Passa pra cá. (pega a cestinha e come, com larica)
CH - (farejando) A senhora deixou alguma coisa no forno? Tá um cheiro de queimado...
V - (passando spray de bom-ar) É que aqui na floresta tem muita queimada. É um absurdo. Fica esse cheiro de mato queimado. Já acabou o inquérito? Então, senta, relaxa! Destensiona, menina! Você tá na casa da vovó! Aqui é um território livre! Veja como são lindas as flores. Pare para ouvir os passarinhos. E tira esse chapeuzinho, faz você parecer uma colegial.
CH - Mas eu sou a heroína desta história, vovó.
V - Não seja besta de tirar onda de heroína, minha netinha... esse negócio de moça direita é uma canoa furada! A sua mãe foi direita a vida toda e apesar dos doces, é tão amarga... Já eu, queimei meu sutiã, fui pra woodstock e sou feliz até hoje!
CH - Por falar na mamãe, a gente estava pensando... está meio difícil pra senhora se cuidar sozinha... sabe, permanecer aqui, isolada, na floresta... por que a senhora não vem morar com a gente?
V - De jeito nenhum! Eu estou muito bem aqui, com a minha casa, minhas ervas naturais, meus amigos.
CH - Amigos? A senhora tem amigos?
V - É claro, ora. Você acha que eu estou enterrada? Estou velha mas não estou morta!
CH - Mas vovó, isso é muito perigoso. As pessoas se aproveitam dos idosos.
V - Não é bem um amigo...
CH - Como assim?
V - A gente tá... ficando...
CH - A senhora quer dizer... um namorado???
V - Calma, menina... não vamos apressar as coisas... a gente ainda tá se conhecendo, se curtindo...
CH - Mas meu Deus, o que é que os outros personagens de contos de fadas vão pensar disso?
V - Que o nosso amor é proibido e desafia todas as convenções. Como deve ser o amor de verdade.
CH - E posso saber quem é esse namorado? Ele tem alguma posição, alguma colocação? Ele trabalha?
V - Bom, ele...
CH - Ele...
V - Ele vive aqui na floresta...
CH - Um pobre! Era só o que faltava! A senhora acha que ele tá de olho em quê, vovó? Na sua casa, claro!
V - Ele é boa pessoa! Quer dizer, não é bem uma pessoa...
CH - Como assim? vovó?? Não vai me dizer que a senhora...
V - É melhor você conhecer logo ele. (para dentro) Josenilton! Pode dar um pulinho aqui, meu bem!
CH - (sussurra, escandalizada) Ele tá aqui?!
V - Você não avisou que vinha!
(aparece o Lobo Mau, envolvido numa toalha, também de óculos escuros)
L - Salve, salve, Chapeuzinho! Hum! Será que sobrou algum doce? (vasculha na cesta)
CH - Mas... mas... é o... o Lobo! O Lobo Mau!?
V - Eu te disse, Josenilton, esse preconceito te acompanha onde você vai. José Nilton é um lobo bom, trabalhador, minha netinha! Ele me ajuda tanto. Ontem, mesmo, tinha uma pantera rondando a casa... pois Josenilton deu um tapa na pantera e afastou o perigo!
CH - Vovó... a senhora se juntou ao meu... ao meu pior inimigo?
L - Escute, Chapeuzinho, eu sei que temos um passado, mas a vida continua, você precisa superar isso...
CH - Cale essa boca, seu conquistador imundo! Nem a minha avó você alivia?
V - Não fale assim, minha filha. Uma mulher como eu, na idade da loba, precisa mesmo de um par.
CH - Mas... vovó... nós somos exemplo para milhares de crianças!
V - Pois bem, criançada! Escutem a dica da vovó: é melhor se entender com os lobos do que passar a vida sonhando com os príncipes! Não viram o que aconteceu com a Bela Adormecida? Esperou mais de cem anos!
(batem na porta. Chapeuzinho abre. Entra o caçador)
CA - Tudo bem por aqui, vovó? Ouvi música muito alta! Tem alguma coisa queimando no forno?
V - Só faltava essa! O chato do caçador!
L - Ih! Sujou!
CH - O lobo está ali, seu caçador! Seduzindo uma pobre e indefesa velhinha!
V - Opa! Indefesa não! Eu fui pra Woodstock! Eu queimei meu sutiã! Eu tenho perfil no Facebook! Quem manda nessa história sou eu!
CH - Opa! Eu sou a principal! É o meu nome que está no título! É o meu chapeuzinho que está a venda nas lojas!
V - Você não é mais criança, menina! Para de falar como se apresentasse um programa infantil! A sua mãe te trata como se você fosse uma bonequinha guardada numa caixa! Você vai acabar igual a ela, entupida de botox e prozac. Tira essa capinha ridícula e vai cair no mundo! Ouve o que a sua vó diz!
CA – (para o Lobo) Você não acha que eu tenho que tomar uma atitude?
L - Que é isso, cara? Vai se meter no meio de duas mulheres brigando? Quem vai acabar apanhando é você!
V - Por exemplo, você, Caçador! Em vez de ficar perseguindo o pobre Josenilton, porque não convida a Chapeuzinho pra sair?
CA - Eu?
CH - Mas vovó!
CA - Eu sempre tive admiração por Chapeuzinho, mas...
V - Então pronto! Tem uma boate excelente no pântano dos aligators!
CH - Mas o pântano é sinônimo de música ensurdecedora, de drogas, de depravação!
V - Então, vocês vão se divertir muito por lá! (bota os dois pra fora. Para o Lobo) Enfim, sós!
L - Ahn, amorzinho, sabe o que é, esta confusão toda me deixou tão cansado! Será que sobrou algum doce?
V - Já cansado? Mas você é tão jovem! Ainda temos a noite toda pela frente!
L - A noite toda? Mas fazem dois dias inteiros que a gente não sai daquele quarto! E sabe o que é, hoje tem aquele jogo e eu...
V - Não acredito que você vai me trocar por futebol depois de dois diazinhas de sexo apressado!
L - É que hoje é a final! E eu apostei no time dos urubus!
V - Apostou? Com que dinheiro? Não vai me dizer que foi com a prestação da casa!
L - Não se preocupe, amor, eu recupero, o jogo tá moleza pros urubus! (sai)
V - Josenilton! Volte aqui! Josenilton! Não! (cai em prantos) Eu fui pra Woodstock, eu queimei meu sutiã, eu marchei pelas diretas, mas tem uma coisa que não muda: é dos canalhas que elas gostam mais! (chora. Batem na porta, ela atende) E não adianta me pedir desculpa, essa foi a última vez... hein? (entra Barba Azul) Barba azul?
B - Eu estava passando por aqui, vovó, vi suas luzes acesas e pensei em convida-la para um café no pântano dos Aligators.
V - Jura? No pântano? Por que não? Me dê só o tempo de botar meu casaquinho. Lá faz frio!
B - Ora, para isso eu tenho braços grandes e fortes!
(ela ri, encabulada, veste um casaco de couro estilo hell’s angels e se encaminham para a porta)
B - Será que tem fila na porta?
V - Ah, não se preocupe, Barba Azul. É como vovó já dizia: a fila anda!
(saem)
_____________________
MÚSICA: ILEGAL, IMORAL OU ENGORDA
O PLANETA DOS BONS PRINCÍPIOS
De Ivan Fernandes
O prisioneiro usa um uniforme listrado.
GUARDA - De pé, por favor.
Prisioneiro se vira e olha para a platéia.
P - Oh, vocês vieram! Muito obrigado! Muito obrigado por terem vindo!
G - Atrás da linha amarela, por favor.
P - Desculpe, desculpe, ainda bem que vieram, obrigado, obrigado.
G - Onde está o seu chapéu?
P - (baixo) Não me faça usar o chapéu na frente deles.
G – prisioneiro 7659, coloque seu chapéu como determina o protocolo.
Prisioneiro coloca a contragosto um grande chapéu de burro.
P – Tá feliz agora?
G – Como parte do seu processo, você foi condenado a prestar serviços à sociedade para reparar o mal que causou a ela durante todos esses anos. Você vai contar sua vida a essas pessoas, para que elas tomem o seu exemplo como um exemplo a ser evitado. Você entende o que está sendo dito aqui?
P - Será que eu posso ter um whisky antes? Meu reino por um jack daniels.
G – Seu reino não vale um jack daniels. Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade?
P - Como quiser.
G – Você está protegido de dizer seu nome. Diga a sua idade e há quantos anos desperdiça sua vida.
P - 35. 35.
G – E como foi que tudo começou?
P - Foram as malditas listas.
G - As listas para uma vida melhor no novo milênio.
P - Chegaram listas na escola onde eu estudava. E as famílias recebiam listas em casa.
G - As listas foram criadas para melhorar a vida dos cidadãos.
P - Eu sempre tive um peso acima do que diziam as listas.
G - A obesidade é um problema de saúde pública.
P - Eu gostava de matar aula pra jogar bola com meus amigos.
G – E ainda há quem critique as listas. Lugar de criança é na escola. Continue.
P - Eu ficava mais de uma hora debaixo do chuveiro quente.
G - Seu miserável! (segura o prisioneiro pela gola, vai agredi-lo, contém-se) A água do mundo está acabando, sabia?
P - Por isso eu fui mandado para o centro de reabilitação, onde permaneci até completar a vida adulta.
G - Aonde você deveria ter aprendido a praticar uma vida melhor para você e para o planeta. Sem álcool, sem drogas, sem carne, sem desperdício, sem plástico, sem banho quente, sem sexo. Ah, não, peraí, sexo ainda pode. Desde que você use camisinha e não trate sua companheira com palavras pornográficas.
P - Eu saí do centro de reabilitação um pouco antes da cidade fechar os muros. Aí todo mundo ficou em observação. Todos nós tínhamos que acordar cedo e fazer exercícios. Eles medem as nossas barrigas todos os dias pela manhã, e controlam nossa dieta.
G - Ame o muro ou deixe o muro.
P - O problema é que lá fora é o lixão. O superaquecimeto. Os tsunamis. Os bueiros que explodem. Então eu achei melhor ficar aqui.
G - Sábia decisão. Mas pra ficar dentro dos nossos muros confortáveis é preciso estar dentro do padrão. Ninguém quer gente diferenciada. Ninguém merece ir para o exercício matinal com sua família saudável e feliz e dar de cara com um balofo. Ou ir para o restaurante e presenciar alguém devorando o cadáver de um animal ainda sangrando.
P - Humm... não fala isso que me dá água na boca...
G - Estão vendo, senhoras e senhores? E nós ainda gastamos com a reabilitação desses sem-vergonhas. Tinha que mandar tudo pra amazônia replantar o que virou pasto pra churrasco. Refazer o estrago que provocam. Depois ainda vem os psicólogos, o pessoal dos direitos humanos, defendendo. Isso é falta de vergonha na cara!
P - Tudo bem, foi só uma vontade, já passou. Será que alguém teria um cigarrinho? Cigarro corta a fome...
G - Viemos até aqui para assistir o depoimento e tudo que você tem a nos oferecer é um câncer de pulmão?
P - Eu estou limpo há seis meses. Eu juro. Seis meses comendo apenas aquela ração humana. Sem molho. Agora não podemos mais comer peixe nem salada.
G - Os mares estão poluídos e as plantações têm agrotóxicos. Nossa ração humana é saudável porque rigidamente controlada em laboratórios. Mantém todos dentro do padrão das listas.
P - Seis meses bebendo só água. Seis meses sem usar nada de plástico.
G - O plástico permanece na natureza para todo o sempre. É um elemento proibido pelas listas.
P - Seis meses sem assistir uma comédia.
G - Não é certo rir dos outros. As comédias exploram estereótipos e preconceitos. O humor tem limites definidos pelas listas.
P - Seis meses sem um tapa na bunda da minha mulher.
G - Tenho certeza que ela agradece.
P - Eu não tenho certezas. Como é que se pode viver com tantas certezas?
G - A dúvida não é positiva. Ser é a questão. Não ser não é a questão. E por não ter atingido a meta de certezas exigida pelas listas, você será deportado para fora dos muros.
P - Não! Peraí! Me dêem uma chance! Quer dizer, vamos conversar, não é pra isso que estamos aqui?
G - Nós estamos aqui por que você foi pego novamente em flagrante, contrabandeando coisas proibidas para dentro dos muros!
P - Eu? Não!
G - Nós temos imagens.
(foco azul. O Prisoneiro passa para o foco e faz uma cena “sem som”, à la vídeo de circuito interno de segurança, com um Traficante. Mas o que ele compra e consome é um milk shake de ovomaltine. O traficante sai, o prisoneiro volta para o guarda e o foco azul some)
G - Um milk-shake de ovomaltine. Por Deus, suas mãos ainda estão sujas deste chocolate. Você não tem vergonha de trazer isso cá pra dentro, pra perto das nossas crianças?
P - Mas foi um milk-shake pequeno! Todos os meus exames estão em dia!
G - É mentira! Nós temos imagens que mostram você adulterando seus exames!
(mesmo foco azul. Mesmo traficante. agora o prisioneiro chega com frascos de sangue e urina. O traficante troca por outros frascos de sangue e urina que ele têm estocados.)
G - É por isso que seu colesterol está sempre dentro dos padrões, hein? Deus sabe o que você pode estar encobrindo.
P - Tá bem, eu me rendo. O que vão fazer comigo?
G - Infelizmente o senhor é branco, sexo masculino, de classe média e heterossexual. Quer dizer, heteroafetivo. Não tem atenuante, não podemos te dar uma bolsa de reabilitação nem organizar uma passeata pelos seus direitos. Mostre a sua barriga.
(o prisioneiro levanta a blusa do uniforme, revelando um barrigão.)
G - Não adianta, você jamais poderá viver como um de nós. Diga adeus ao Planeta dos Bons Princípios!
P - Mas não é possível que eu não tenha nenhum direito!
G - Meu compromisso não é com você! É com o bem coletivo!
P - Já sei! E a marcha pela liberdade? Foi uma manifestação coletiva! Eu participei!
G - Participou? Então toma! A liberdade é toda sua!
(aperta um botão. Deve-se criar um efeito como se o prisioneiro fosse arremessado para fora, por cadeira ejetável, chão se abrindo, campo gravitacional que o puxa pra fora, ou qualquer outra coisa).
G - Pra fora dos muros! Direto pro lixão! Mais um! (comemora como se fosse uma cesta de basquete. O traficante entra.)
T - Foi daqui que pediram um milk-shake?
G - Bom trabalho, Bob. Graças a você, é pelo menos uma execução por dia. Isso aqui em breve vai virar o paraíso!
T - (dá um dinheiro ao guarda) Esta é a sua parte, doutor. Quando é que vai me mandar o próximo?
G - Vamos segurar um pouco. Tá saindo uma nova leva de proibições. Tem Monteiro Lobato? Sítio do pica-pau amarelo?
T - Tenho um monte. Já soube que vão tirar do mercado.
G - Racistão dos brabos. Se alguém quiser sítio do pica-pau agora, vai ter que pingar na nossa mão! Pode ir. Eu te aviso.
(o traficante vai saindo)
G - Ei! Meu milk-shake! (pega o milk-shake das mãos do traficante.)
T - Às vezes eu acho você pior que eu.
G - Ora, Bob, o problema não é ter vícios. É saber que os outros têm, e não explorar isso.
O traficante sai. O Guarda saboreia o milk-shake.
G - Ah... frutas vermelhas! Meu favorito!
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No nascimento e na morte, transmissão ao vivo
Maternidades Criam parto on-line
O VELHO BILL
De Ivan Fernandes
VOZ: “Existe um lugar que todos imaginam, alguns falam a respeito, mas todos um dia vão conhecer”.
Lugar nenhum. Tudo branco, limpo e ligeiramente enevoado.
K. está andando de pijama branco com cara de quem se perdeu no caminho de volta pra casa.
K - Mas o que houve? Pra onde foi todo mundo? Eu estava fazendo a peça, ontem, e não me lembro mais de nada! Por que essa neblina? Não estamos no verão? Ei! Alguém me ajude!
Entra William Shakespeare, o próprio
WS - O verão da tua vida deu lugar ao inverno do descontentamento, ó jovem gentil-homem. (pausa. O outro olha em volta)
K - (olha em volta) É comigo?
WS - E tem outro jovem gentil-homem por aqui?
K– Peraí... você é... é...
WS - William Shakespeare, a seu dispor. Mas meus amigos do Globe Theatre me chamam de Bill. O velho Bill.
K - Shakespeare? Mas... mas se você está aqui... então eu... eu estou...?
WS - No país desconhecido, na fronteira que ninguém cruza de volta, que confunde a nossa vontade, que nos leva a preferir os males que já temos do que voar para outros que não conhecemos.
K - Resumindo: morto. Mas quem vinha buscar os mortos não era parente, mãe, pai, avó?
WS - Tem certeza que quer a sua mãe por aqui?
Luz sobre a Mãe, também de branco.
M - Mas você foi morrer com essa roupa, meu filho? O que é que devem estar pensando de você no funeral? Mas será que nem depois de morto você toma jeito? Anda, ajeita esse algodão na narina.
K - É... pensando bem acho que eu prefiro ser recebido pelo velho Bill, mesmo. (sai a mãe) Caramba, não posso acreditar que tudo acabou, que eu morri... não posso crer...
WS - Crer ou não crer, eis a questão.
K - Mas como foi que aconteceu?
WS - Foi o seu coração.
K - Meu coração grande... sensível... frágil como todo coração de grande artista...
WS - Não, seu coração cansado e entupido de gordura de coca-cola e hambúrguer.
K -Ah, esse coração. Pelo menos eu fui um artista e deixei uma obra.
WS - A obra do seu apartamento. Que ficou sem pagar.
K - Pelo menos morri no palco, como Moliére e Cacilda Becker.
WS - Morreu na coxia, quando o espetáculo foi adiado por falta de público.
K - Peraí, eu me lembro! Não teve público e eu ia ter que arcar com todas as despesas do teatro sozinho. Aí eu comecei a sentir uma dor no braço esquerdo... e a última coisa que eu me lembro foi ver duas pessoas vestidas de branco lá na última fileira da platéia.
WS - Justamente. São os fantasmas que assombram os teatros. Hoje em dia praticamente só eles assistem as peças. É um público que está aí sem ser aproveitado. Aliás, é sobre isso que eu quero falar com você. Sabe, eu tenho notado que minhas peças não são mais tão montadas lá embaixo...
K - Ah, é que tem muito personagem, Bill. Hamlet, Ofélia, Guarda 1, Guarda 2, Guarda 3... A produção fica cara, o figurino aumenta...
WS - Pois é, eu tenho sentido vontade de escrever novas peças... mais adequadas a esse tempo.
K – E uma linguagem mais clara também ajudaria... sem tantos oh! E ai de mim! E nada de vós, por favor. Vós dissestes, vós sabíeis... Ninguém sabe conjugar os verbos em vós, aliás parece que o vós foi até banido da nossa última reforma ortográfica.
WS- É por isso que eu tenho pensado em entrar pro mercado dos psicografados.
K - Psicografados?
WS - Você sabe que até hoje eu me mantive reservado sobre esse assunto. Nunca baixei em ninguém, nunca ditei nada. Mas muitos colegas daqui experimentaram e aprovaram. Balzac está vendendo mais psicografado do que vendia em vida!
K - Balzac?
WS - Se é que aquele francês metido a besta está dizendo a verdade, sabe como ele gosta de contar história. E os críticos ainda tem a cara de pau de dizer que ele mostrou a vida como ela é. Há! (cospe) A vida como ela é mostrei eu, com sua grandeza, sua poesia, sua sombra errante, seu som e sua fúria significando nada...
K - Resume, Bill, resume.
WS - Eu preciso da sua ajuda pra escrever livros psicografados.
K - Mas como eu posso ajudar se eu to morto também?
WS - Por enquanto. Mas eu posso dar um jeito nisso. Você ainda está na mesa de operação. O lá de cima é meu chegado. Se eu conseguir mandar você de volta, você me psicografa?
K - Sabe, o que é, Bill, é que eu tenho meu próprio estilo, meus próprios projetos, acho que não pega bem...
WS - E o que é que pega bem, continuar com o teatro vazio?
K - Mas que tipo de peça a gente vai fazer?
WS - Peça espírita, é claro!
K - Mas eu não entendo nada disso!
WS - Eu também não entendia. Com o tempo, você vai aprendendo umas coisinhas. O além-vida é uma sombra errante, um lugar cheio de som e fúria...
K - Tá bom, já entendi.
WS - E então, aceita?
K - Que remédio? Eu até já tinha hipotecado o túmulo pra pagar a dívida da peça...
WS - Ótimo! Porque você nao vai mais precisar dele por enquanto. Agora, venha, quero te mostrar um pouco desse outro mundo.
K - Mas eu não tenho que voltar?
WS - Calma, ainda falta uma hora pra terminar a sua anestesia.
K - Você vai me mostrar o nosso lar?
WS - Não, esse não, o pessoal por ali dorme meio cedo... vou te mostrar o paraíso dos artistas e dos boêmios de todas as épocas: o Nosso Bar. É descendo por aqui. Vamos.
(saem)
O VELHO BILL
De Ivan Fernandes
VOZ: “Existe um lugar que todos imaginam, alguns falam a respeito, mas todos um dia vão conhecer”.
Lugar nenhum. Tudo branco, limpo e ligeiramente enevoado.
K. está andando de pijama branco com cara de quem se perdeu no caminho de volta pra casa.
K - Mas o que houve? Pra onde foi todo mundo? Eu estava fazendo a peça, ontem, e não me lembro mais de nada! Por que essa neblina? Não estamos no verão? Ei! Alguém me ajude!
Entra William Shakespeare, o próprio
WS - O verão da tua vida deu lugar ao inverno do descontentamento, ó jovem gentil-homem. (pausa. O outro olha em volta)
K - (olha em volta) É comigo?
WS - E tem outro jovem gentil-homem por aqui?
K– Peraí... você é... é...
WS - William Shakespeare, a seu dispor. Mas meus amigos do Globe Theatre me chamam de Bill. O velho Bill.
K - Shakespeare? Mas... mas se você está aqui... então eu... eu estou...?
WS - No país desconhecido, na fronteira que ninguém cruza de volta, que confunde a nossa vontade, que nos leva a preferir os males que já temos do que voar para outros que não conhecemos.
K - Resumindo: morto. Mas quem vinha buscar os mortos não era parente, mãe, pai, avó?
WS - Tem certeza que quer a sua mãe por aqui?
Luz sobre a Mãe, também de branco.
M - Mas você foi morrer com essa roupa, meu filho? O que é que devem estar pensando de você no funeral? Mas será que nem depois de morto você toma jeito? Anda, ajeita esse algodão na narina.
K - É... pensando bem acho que eu prefiro ser recebido pelo velho Bill, mesmo. (sai a mãe) Caramba, não posso acreditar que tudo acabou, que eu morri... não posso crer...
WS - Crer ou não crer, eis a questão.
K - Mas como foi que aconteceu?
WS - Foi o seu coração.
K - Meu coração grande... sensível... frágil como todo coração de grande artista...
WS - Não, seu coração cansado e entupido de gordura de coca-cola e hambúrguer.
K -Ah, esse coração. Pelo menos eu fui um artista e deixei uma obra.
WS - A obra do seu apartamento. Que ficou sem pagar.
K - Pelo menos morri no palco, como Moliére e Cacilda Becker.
WS - Morreu na coxia, quando o espetáculo foi adiado por falta de público.
K - Peraí, eu me lembro! Não teve público e eu ia ter que arcar com todas as despesas do teatro sozinho. Aí eu comecei a sentir uma dor no braço esquerdo... e a última coisa que eu me lembro foi ver duas pessoas vestidas de branco lá na última fileira da platéia.
WS - Justamente. São os fantasmas que assombram os teatros. Hoje em dia praticamente só eles assistem as peças. É um público que está aí sem ser aproveitado. Aliás, é sobre isso que eu quero falar com você. Sabe, eu tenho notado que minhas peças não são mais tão montadas lá embaixo...
K - Ah, é que tem muito personagem, Bill. Hamlet, Ofélia, Guarda 1, Guarda 2, Guarda 3... A produção fica cara, o figurino aumenta...
WS - Pois é, eu tenho sentido vontade de escrever novas peças... mais adequadas a esse tempo.
K – E uma linguagem mais clara também ajudaria... sem tantos oh! E ai de mim! E nada de vós, por favor. Vós dissestes, vós sabíeis... Ninguém sabe conjugar os verbos em vós, aliás parece que o vós foi até banido da nossa última reforma ortográfica.
WS- É por isso que eu tenho pensado em entrar pro mercado dos psicografados.
K - Psicografados?
WS - Você sabe que até hoje eu me mantive reservado sobre esse assunto. Nunca baixei em ninguém, nunca ditei nada. Mas muitos colegas daqui experimentaram e aprovaram. Balzac está vendendo mais psicografado do que vendia em vida!
K - Balzac?
WS - Se é que aquele francês metido a besta está dizendo a verdade, sabe como ele gosta de contar história. E os críticos ainda tem a cara de pau de dizer que ele mostrou a vida como ela é. Há! (cospe) A vida como ela é mostrei eu, com sua grandeza, sua poesia, sua sombra errante, seu som e sua fúria significando nada...
K - Resume, Bill, resume.
WS - Eu preciso da sua ajuda pra escrever livros psicografados.
K - Mas como eu posso ajudar se eu to morto também?
WS - Por enquanto. Mas eu posso dar um jeito nisso. Você ainda está na mesa de operação. O lá de cima é meu chegado. Se eu conseguir mandar você de volta, você me psicografa?
K - Sabe, o que é, Bill, é que eu tenho meu próprio estilo, meus próprios projetos, acho que não pega bem...
WS - E o que é que pega bem, continuar com o teatro vazio?
K - Mas que tipo de peça a gente vai fazer?
WS - Peça espírita, é claro!
K - Mas eu não entendo nada disso!
WS - Eu também não entendia. Com o tempo, você vai aprendendo umas coisinhas. O além-vida é uma sombra errante, um lugar cheio de som e fúria...
K - Tá bom, já entendi.
WS - E então, aceita?
K - Que remédio? Eu até já tinha hipotecado o túmulo pra pagar a dívida da peça...
WS - Ótimo! Porque você nao vai mais precisar dele por enquanto. Agora, venha, quero te mostrar um pouco desse outro mundo.
K - Mas eu não tenho que voltar?
WS - Calma, ainda falta uma hora pra terminar a sua anestesia.
K - Você vai me mostrar o nosso lar?
WS - Não, esse não, o pessoal por ali dorme meio cedo... vou te mostrar o paraíso dos artistas e dos boêmios de todas as épocas: o Nosso Bar. É descendo por aqui. Vamos.
(saem)
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A HORA DOS CARRASCOS
A
O Repórter
R - O candidato Oliveira Prado é o novo presidente do país. Apontado como zebra nas eleições, o candidato despontou espetacularmente nos últimos dias, como uma alternativa ética ao candidato que liderava as pesquisas, graças principalmente à estratégia de marketing do publicitário K. Marro. Considerado como o principal responsável pela eleição, o marketeiro K. Marro se encontra curiosamente recolhido, desde o anúncio da vitória. Seu paradeiro é desconhecido. Vamos agora às primeiras medidas presidenciais.
B
O anjo e o publicitário
O publicitário tem um pesadelo. Acorda. Um anjo está diante dele.
A – E aí, Camargo? Pensou?
K – K. Marro. Me chame de K. Marro.
A – Já falei que não acredito em numerologia. Nasceu Camargo, vai morrer Camargo. Ninguém pode fugir ao seu destino. E o seu foi traçado por aquele que é maior do que nós.
K – Mas por que eu? Justamente agora que as coisas vinham dando certo pra mim! Sabe quanto vale a imagem de um presidente? Ali não tinha nada! Fui eu que criei!
A – E vai ajudar a destruir. O seu prazo acabou. Você precisa dar uma resposta. Ou cumpre a missão ou aceita o flagelo.
K – Mas será que você... quer dizer, Ele lá em cima não entende? Eu nunca fui um cara violento, nem brigar na escola eu briguei. E agora um assassinato!
A - Antes os profetas eram convocados apenas a abandonar suas vidas comuns e pregarem no deserto. Agora os tempos são outros. Você tem que ter fé e cumprir sua missão. Jonas também foi assim, também tentou fugir de sua missão. Eu precisei resgatá-lo de dentro do estômago de uma baleia. Não me obrigue a fazer esse tipo de coisa. Estômagos de baleia me fazem vomitar.
K - Pregar para as pessoas é fácil, isso eu também faço. No máximo vou ser tirado de maluco. Mas matar! E se ainda fosse alguém qualquer, mas... o presidente?
A - O presidente é corrupto, vil e atira o povo à miséria e à ignorância. Antes foi o tempo dos profetas; agora é a hora dos carrascos. (O Anjo entrega ao publicitário uma espada)
C
O promotor
P - Eu me dirijo agora diretamente ao júri. Ao júri de um país democrático. Um país que dá a esse assassino o direito de se defender. Mas eu peço a esse mesmo júri que se lembre do crime. O presidente Oliveira Prado, assassinado a golpes de espada, em pleno momento em que tomava posse de um cargo para o qual foi escolhido por milhões de brasileiros. Por alguém de sua máxima confiança, diante de um país inteiro, diante das câmeras de todo o mundo. O presidente celebrava a conquista das eleições dividindo com o povo uma garrafa de Romanée-Conti, promovendo o acesso a um vinho caro antes apenas reservado à elite. O assassino diz ter agido a mando de Deus. Mas o laudo psiquiátrico não indicou qualquer distúrbio. Isso basta para anular a tese de insanidade temporária levantada pela defesa. Ninguém sabe como a espada passou pelo detector de metais e pelo esquema de segurança. Mas, para que passasse, ele não poderia agir sozinho. Minha opinião, senhoras e senhores do júri, é de que há uma grande conspiração para tirar a vida dos homens públicos de valor.
D
O promotor e o anjo
O promotor tem um pesadelo. Acorda. Um anjo está diante dele.
A - E aí? Pensou na sua missão?
P - Eu não acredito em você. Eu já disse que sou ateu. Isso é uma alucinação. Só está acontecendo porque é o primeiro caso grande da minha carreira. Estou sobre muita pressão. Não me acostumei às câmeras.
A - Vamos encarar a realidade. Suas tentativas de fugir não estão dando certo. Os comprimidos pra ficar acordado não podem funcionar pra sempre.
P - Você é um pesadelo. Tudo tem explicação psicológica. Você não existe no mundo real.
A - Vou te dizer o que existe no mundo real: a sua carreira acabou. Olhe pra sua figura. Você está pálido, fraco, assustado, olhar perdido, se confunde no tribunal, cochila. E depois acorda gritando na frente de todos.
P - Eu não cochilei. Eu só fechei os olhos por 5 segundos e você apareceu.
A - É. Foi golpe baixo, eu reconheço. Mas o que importa é você não vai ter estrutura pra levar o julgamento adiante. As mesmas pessoas que te achavam um talento agora duvidam de você.
P - É claro. Se cada vez que elas fechassem os olhos aparecesse um anjo pedindo pra assassinar o juiz, elas também iam parecer fracas e assustadas.
A - E eu vou aparecer em todos os seus sonhos enquanto você não aceitar sua missão. É até fácil, no Egito tivemos que recorrer aos gafanhotos e às pestes.
P - Eu vivo num estado de Direito. Por nenhum método nem nenhuma tortura vou colaborar com essa conspiração.
A - A tal conspiração contra os homens de valor? Não se preocupe. O juiz é corrupto e vende suas sentenças. Não tem valor nenhum. E essa é a vontade daquele que é maior do que nós.
P - Conversa. Onde está o amor, o perdão, o milagre, essas coisas todas? Não é disso que ele costumava tratar?
A - O tempo do amor acabou. Agora é a hora dos carrascos. (entrega a ele uma espada)
E
O repórter
R- Estamos aqui diante do presídio, com mais detalhes dessa tragédia que chocou a nação. O jovem promotor Sérgio Guerra está na mesma cela que o publicitário K. Marro. Sérgio assassinou, com uma espada medieval, o juiz Severo Brito. O crime ocorreu em pleno tribunal, durante o julgamento do assassinato do presidente Oliveira Prado, e foi filmado por câmeras do mundo todo. Os dois assassinos se disseram inspirado por “aquele que é maior do que nós”. Aquele quem? Ninguém ainda sabe explicar o que une os dois crimes exatamente iguais. Estaria realmente havendo uma conspiração pra tirar a vida dos homens de valor deste país? Ou tudo não passa de um terrível efeito da luta pelos holofotes nesta era de celebridades? Aqui, na entrada do presídio, os populares se reúnem com manifestações de apoio aos dois assassinos. Muitos trazem imagens de políticos que deveriam ser “os próximos”.
F
O repórter e o anjo.
O repórter tem um pesadelo. Acorda. Um anjo está diante dele
R - Quem é você?
A - Primeiro é melhor a gente tomar alguma coisa. Vai por mim. Que tal um whisky?
R - Isso é um sonho?
A - Há mais coisas entre o sonho e a realidade do que supõe a tua vã filosofia. Vai, toma um whisky. Quantas pedras?
R – Já sei. É que eu tenho trabalhado demais. Já tô a dois dias virado. Me disseram que a partir do terceiro acontecem coisas estranhas. Não levei fé. (pega comprimidos) Mas uns vermelhinhos desses e amanhã nem vou me lembrar de você.
A - Eu tenho tempo, Daniel, eu posso esperar. Centenas de anos.
R - Ei! Como você sabe o meu nome?
A – Eu conheço muitos nomes. Só o meu chefe tem 72 nomes. Em hebraico, sem contar as outras línguas. E eu tive que decorar todos. Mas eu vim aqui justamente falar de um nome. JJ Januário. Conhece?
R - Claro. É o meu chefe. O dono da emissora.
A - Todo mundo precisa de um chefe, não é? Gosta do seu?
R - Paga em dia.
A - O meu chefe não gosta dele. O meu chefe acha que ele tem atirado o povo à ignorância e ao embrutecimento.
R - Isso é problema do seu chefe.
A - Nosso. Problema nosso. Mas a gente fala nisso depois. Agora eu quero te mostrar essa espada. Dá uma boa olhada nessa espada. Maneira, não é?
FIM
___________________________Marido flagra padre fazendo sexo com mulher em igreja
SAINDO DO ARMÁRIO
De Ivan Fernandes
Dentro de um armário. Um padre está pacientemente sentado, ouvindo gemidos difusos de uma trepada que se desenrola fora do armário, ou seja, fora de cena. De repente, uma campainha. Silêncio. O padre aguça o ouvido. Um homem só de toalha é arremessado pra dentro do armário. Os dois se olham, surpresos, por um momento.
H – Padre... o que o senhor está fazendo aqui?
PA – Ah, meu filho, estou aqui desde de manhã... vim pedir uma contribuição pra quermesse da paróquia, deu nisso.
H – Ué, e agora o padre tá procurando fundos pra quermesse no fundo do armário dos outros, é? Isso é natural?
PA - Perfeitamente natural. Os lugares menos recomendados são os que mais necessitam da presença da religião. Sempre há ovelhas desgarradas...O que não é natural é o senhor se escondendo aqui nesses trajes.
H – Bom, é que eu tava... tava...
PA – Homem, o que você tava fazendo eu ouvi, só não entendo porque correu pra cá.
H – É que o marido chegou.
PA – Você não é o marido não?
H – Eu não. Sou o amigo, vim procurar por ele, deu nisso.
PA – Vixe.
(os gemidos recomeçam.)
PA – Pelo jeito vai demorar. É melhor o senhor arranjar lugar.
(se acomodam. Ficam ouvindo. Campainha. Os gemidos param de repente. Eles aguçam o ouvido. Um entregador, com capacete e embalagem de pizza, é arremessado pra dentro do armário. Da cintura pra baixo, está só de toalha.)
PA – E você, quem é, meu filho?
E – Só vim entregar uma família meio calabresa meio portuguesa. Não tinha troco. Deu nisso.
H – Ah, foi por isso então que ela fez tanta questão de ligar pra essa pizzaria.
E – Eu não sei de nada, moço, é o meu primeiro dia nesse emprego, juro. Meu pai vivia insistindo pra eu trabalhar. Se eu soubesse que era assim, já tinha começado criança.
PA – O trabalho dignifica o homem, meu filho.
(recomeçam os gemidos)
E – O negócio aí parece que vai longe. Dá pra abrir um espacinho pra mim? Tô com as pernas doendo.
(senta-se em meio aos dois. tenta acomodar o capacete e a embalagem de pizza.)
H – Não dava pra deixar essas coisas lá fora, não?
E – E eu sou besta? Meu kit de sobrevivência. Pode vir a terceira guerra mundial que eu não tomo na cabeça nem passo fome. (abre a embalagem) Alguém quer um pedaço? Já tá fatiadinha. E tem guaraná.
H – Pô, eu vou aceitar... bom pra forrar o estômago... sabe como é... exercício físico...
PA – Nem só de pão vive o homem... uma pizzazinha cai muito melhor.
(comem, bebem. Campainha. Os gemidos param. Eles aguçam o ouvido. Um policial fardado é jogado pra dentro do armário. Da cintura pra baixo está só de toalha. pausa)
PO – Muito bem, pessoal, estou só cumprindo a minha ronda...
E – Espero que o senhor não diga que veio dar uma dura...
PO – Na verdade, eu vim atender um chamado da vizinhança... ocorrência de barulho sexual em volume excessivo... deu nisso. (voltam os gemidos de fora do armário) Vocês estão aqui há muito tempo?
PA – Desde de manhã.
H – A tarde inteira.
E – Acabei de chegar.
PO – Então são vocês que estão causando os barulhos!
H – Olha, seu guarda, com todo respeito, mas quem tava fazendo barulho era ela.
PA – Essa mulher está possuída, seu guarda.
E – Com ela a gente bota e leva chifre ao mesmo tempo.
PO – Mas não é possível. Isso não é humano. Alguma hora ela vai ter que parar. (pausa. Ficam ouvindo os gemidos) Felizmente eu sou um policial e fui treinado pra ocasiões como esta. (tira um baralho do bolso) Quem topa um buraquinho?
PA – Fechado ou tranca?
H – Eu embaralho.
PA - Duplas por ordem de chegada: eu e o amigo contra o guarda e o entregador.
PO – Valendo quanto?
H – O perdedor sai do armário. Alguém tem que resolver essa situação.
E – A mesa pode ser a caixa da pizza.
(se organizam com grande dificuldade no pequeno espaço. Começam a jogar. Campainha. Os gemidos param. Eles escutam, apreensivos. Um jogador de futebol com uniforme e bola é arremessado pra dentro do armário. Da cintura pra baixo está só de toalha. pausa)
PA – (virando-se) Desisti de acompanhar.
J – Eu só tava jogando na quadra aqui do lado, aí a bola caiu aqui, vim buscar, deu nisso.
PO – Pô, meu amigo, pede a ela pra te botar em outro armário. Esse aqui tá parecendo uma van da central às seis da tarde .
J – Agora é tarde. Acho que o marido chegou.
PA – Deus te ouça.
(os gemidos recomeçam. Eles ficam ouvindo)
J – Será que eles vão demorar muito? Eu tenho claustrofobia.
E – O tempo de entrega da pizza já estourou.
H – A gente não pode ficar aqui pra sempre.
PO – Vamos retomar o jogo. O perdedor sai do armário.
H – Não tem mais espaço pra jogar.
PO – Vamo no zerinho ou um.
(tiram zerinho ou um, quase sem mover os braços por falta de espaço. Jogam uma vez, duas, três.)
H – Ninguém perde, ninguém ganha. Não é possível!
PO – Isso não pode ficar assim! Alguém vai ter que sair e resolver essa situação.
PA – Mas e o marido?
PO – Que se dane! Uma coisa é certa: a gente tá em maior número.
E – Então quem vai primeiro?
(silêncio)
J – Vamos fazer uni-duni-tê passando a bola de um em um. Aquele que terrminar com a bola na mão, sai.
(começam a rodar a bola de um em um, fazendo uni-duni-tê, de forma lenta e nervosa, como se estivessem fazendo roleta russa. Quando o resultado está pra sair, toca a campainha. Param os gemidos. Eles se olham apreensivos. Um palhaço cheio de balões de aniversário é arremessado pra dentro do armário. Da cintura pra baixo, está só de toalha.)
H - O que é isso? A ilha de Lost?
(todos os celulares tocam ao mesmo tempo. pausa. Eles se olham. atendem)
VOZ EM OFF - Bem-vindos à corrida.
H – Que corrida?
VOZ EM OFF – A corrida pelo direito de nascer.
E – Que porra é essa? A mesma voz está falando com todo mundo ao mesmo tempo?
(o padre se benze)
VOZ EM OFF – Este armário é um portal de outra dimensão. Para aqui vem aqueles que estão prestes a retornar ao mundo.
PO – É isso que a gente quer, xará! Voltar pra nossa vida normal.
VOZ EM OFF – Mas só um de vocês poderá voltar.
(pausa nervosa)
PA – Mas como assim? E a minha paróquia?
E – E a pizzaria?
J – E o futebol?
PO – A minha cervejinha?
VOZ EM OFF – A vida de vocês não existe. É apenas uma ilusão criada para distraí-los. É tipo Matrix. Quer saber o que vocês realmente são? Olhem seus bolsos.
(devagar, eles olham nos bolsos. Os gemidos aumentam. Tiram e vestem máscaras de meias brancas que cobrem o rosto deixando olhos e boca de fora.)
PA – Nós somos...
H - ... espermatozóides?
J – Caralho!
PA – E você... o Criador...
VOZ EM OFF – Exatamente! O momento está chegando! Daqui a 20 segundos, vocês serão arremessados dentro de um túnel vaginal. Tratem de nadar o mais depressa possível. É comum nessa hora passar um filme do que será toda a sua vida na terra. Não se distraiam com ele, depois ninguém vai lembrar de nada mesmo. Nadem pela própria vida, pois só um de vocês conquistará... o direito de nascer! Iniciando a contagem... 10...9...
(os gemidos aumentam. Eles se preparam)
E – Peraí, gente, vocês tão levando isso a sério? Isso não faz o menor sentido!
VOZ EM OFF – E juntar todos vocês dentro do armário de uma igreja, faz sentido? 8... 7...
J – Mas se for verdade, como vai ser essa nova vida?
VOZ EM OFF – Parecida com a antiga: com um pouco de som é fúria, um pouco de mel e drama, e com um monte de mistérios que não se resolvem. Daqui pra frente é com vocês. 6... 5...
H – A minha vida antiga era uma merda mesmo...
PA – Na minha próxima vida não vou ser padre nem fodendo.
PO – Quem quiser que fique. E abra espaço pra quem sabe nadar.
VOZ EM OFF – 4... 3...
(o palhaço distribui os balões de aniversário para cada um)
VOZ EM OFF – 2... 1... Comportas abertas! Faça-se a luz!
(Uma luz intensa começa a brilhar por cima deles. Eles soltam os balões de gás, que sobem devagar em direção à luz, enquanto os gemidos chegam ao clímax e as luzes vão morrendo.)
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'Me dá o dinheiro ou te mato', disse a mulher.
BONNIE E CLYDE BY TARANTINO
Zelina, vestida de noiva, com uma maleta. Entra Luiz Arthur, de roupão, falando ao telefone.
L – Certo, Melanie! Mande comprar 200 na Simex, a preço de mercado, saindo de posição. Vá depressa. Só faltam dois minutos pro fechamento. Isso, a do algodão vai cair, vende agora na alta! investe em alimento, que tá subindo. Compre na bolsa de grãos de tóquio 250 lotes de feijão vermelho. Me passe as chamadas de abertura da bolsa de New York e chicago. E compre 5 mil em OTNs. Aguardo. (desliga o tel) Ah, realmente, querida, que ótima recepção. O champagne de primeira em taças de cristal. Aquelas latinhas de caviar russo que ninguém come, mas fazem uma impressão ótima. o sistema de vigilância perfeito, nenhum paparazzi, sem registros. O passaporte e as passagens, tudo como nós sonhamos. Pra não falar desta suíte, não, olha pra essa suíte. Vai lá no banheiro pra você ver: tudo transparente! Vista panorâmica! Tudo melhor do que o esperado para nós. (só agora percebe a atitude da mulher) Mas você ainda às voltas com essa mala? Coração, é pra isso que existem os carregadores. (tira a maleta dela e deixa na cadeira ou cama) Olha, você toca essa sinetinha e aparece um. (ergue a sineta)
Z - Pede ao carregador pra juntar os seus cacos. Porque eu vou deixar você, Luiz Arthur. (pausa. Ele deixa cair a sineta no chão)
L – Mas... nós nos casamos hoje!
Z – E não era isso que você queria? Não lhe dei essa satisfação? Quer mais o quê? lua de mel com beijinho não tá incluído no preço.
L – Mas... Zelina... nós planejamos tudo... o desfalque... a fuga... o casamento... foram meses...
Z – Eu também planejei tudo, Luiz Arthur. O dinheiro na minha conta... a independência... o resto da vida no Caribe com um surfista tarado e de barriga tanquinho...
L – Mas nós abrimos a conta na Suíça no seu nome, só pra não despertar suspeitas... até a minha parte está lá... e a senha está na maleta, nenhum de nós sabe...
Z - (aponta uma arma) Perdeu, playboy! (pausa. O homem, surpreso, se recompõe)
H – Zelina, basta uma denúncia minha que tudo vai por água abaixo...
M - É aí que entra a chave de ouro do meu planejamento. A sua morte.
(pausa)
H – Você teria coragem, Zelina? Depois de tudo que vivemos juntos?
M – Tudo o quê, Luiz Arthur? Acompanhar os movimentos das bolsas da Ásia? Visitar bancos pra saber qual tem juros mais baixos? Medir as diferenças na taxa de câmbio dos países? Você chama isso de romance?
H – Mas aquela era a hora do planejamento. A hora do romance era agora!
M- Ah, é?! E qual a primeira coisa que você faz quando entra no nosso ninho do amor? Se tranca no banheiro com os seus jornais e as suas cotações! Faça-me o favor! Além do mais você é o homem mais pão-duro do universo! A gente desviou 50 milhões e você deu 50 centavos de gorjeta pro carregador. Você acha que eu vou me sujeitar à sua pensão? Melhor passar por cima de você e ficar com a herança!
H – Peraí! Além de roubar a minha parte, você ainda vai querer herança?
M - Quem tudo quer, fica sem nada, Luiz Arthur. Vamos, diga suas últimas palavras.
H - Posso pentear meu cabelo? Não quero que pensem que depois de morto me tornei desleixado.
M – Ególatra! Narcisista! O mundo tem que girar em torno de você, mesmo depois da sua morte! vai, Luiz Arthur, arruma o seu cabelinho...
(o homem mexe no bolso do roupão, como se fosse tirar um pente. Mas tira uma arma, que aponta para a mulher. Esta permanece com sua arma apontada para o marido)
H – E agora?
M – (chocada) Luiz Arthur... você trouxe uma arma pra nossa lua de mel? Meu Deus, com que tipo de homem eu me casei?
H – Com o tipo que não confia nunca. Um especulador de alto risco, que parte da conclusão elementar que toda mulher é uma operação financeira que tem tudo pra dar errado. Você pensa que me enganou, Zelina? Com a sua pressa em terminar as transações? Sempre me sonegando seus fundos de investimento? Mas você estava tão distraída pela sua ambição que não percebeu que é apenas uma parte do meu plano. A esta hora todas as centrais de inteligência policial devem estar se dirigindo pra cá.
M – Você não seria louco. Está envolvido nisso até o pescoço.
H – Será mesmo? O seu nome está espalhado em todas as evidências como digitais.
M – Eu era só a laranja, e você sabe disso.
H – E eles? Será que sabem? Além disso é sempre a laranja que se fode.
M – Você não teria coragem de fazer isso com a sua própria mulher.
H – Não? olhe a sua passagem. Está em nome da Melanie, minha secretária de 18 anos. a sua vai no máximo pra Bangu I! A minha para as ilhas do Caribe! Sim, minha cara Zelina, eu pensei em tudo. Entreguei você à polícia pra ficar com sua parte e poder fugir com a Melanie.
M – Aquela sonsa! Eu sempre desconfiei!
(entra um carregador.)
C – Foi daqui que tocaram a sineta?
(o homem e a mulher, com a mão que têm livre, puxam outra arma, que apontam para o carregador. Este, por sua vez, saca duas armas, que aponta para o casal. De forma que cada um tem duas armas apontadas pra si, e aponta duas para os outros)
H – O que é que está havendo aqui?
C – Abaixem as armas!
H – Não! você abaixa as armas!
C – Eu pedi primeiro!
H – Mas chegou depois!
M – Vocês abaixem as armas senão eu rodo a minha baiana aqui dentro! Porque eu não vou perder essa parada nem morta!
C – Que merda! a melanie não disse que vocês estavam armados.
M – Quem é você?
C- O namorado da Melanie.
H – Chegou tarde, garoto. a Melanie vai fugir comigo.
C – Isso é o que você pensa. Nós planejamos tudo. Estou seguindo vocês há meses. Nesse momento a polícia está com um dossiê contando tudo sobre suas atividades criminosas.
H – Isso não passa de um blefe.
C – Ah, é? Pois olhe a sua passagem e verá que o meu nome está nela. Nós vamos viver no Caribe com o dinheiro da recompensa e do acordo que a gente fez com os policiais corruptos.
H – bom, isso a gente pode resolver aqui... afinal, onde roubam dois roubam três, quatro...
C – Tá me tirando de otário? Eu carreguei as malas de vocês dez andares escada acima e a gorjeta foi 50 centavos. Que acordo vou querer com o senhor?
M – Ah, mas comigo pode ter outro tipo de acordo...
C – A senhora me desculpe, maior respeito, maior consideração, mas manter uma mulher só já dá trabalho. duas é uma coisa que eu não desejo ao pior inimigo. Eu só quero mesmo é matar vocês e ficar com a grana, muito obrigado, mas não precisa mais não.
(ao longe, soa a sirene de polícia)
C – Eu não disse que a polícia estava vindo?
H – Quem disse que a polícia estava vindo fui eu!
M – Calem a boca! Fui eu que chamou a polícia! Enquanto você vendia suas cotações no banheiro, eu plantei nessa suíte provas que incriminam meu marido!
C – Oh shit! Cada um de nós traiu o outro!
(batem na porta)
C – E agora?
M – É a polícia, ora!
H – Mas a que você chamou, a que eu chamei ou a que ele chamou?
M – Quer saber? Eu vou é fugir pela escada de incêndio.
C – Ninguém se mexe!
(daqui pra frente os 3 falam ao mesmo tempo)
H – Abaixa essa arma se não eu atiro! Os dois! a maleta é minha!
C – Se alguém se mexer toma bala! Todo mundo com a mão pra cima onde eu possa ver! A maleta é minha!
M – A maleta é minha e se alguém se meter na minha frente vai se arrepender. Tão pensando que mulher não sabe atirar? Eu vou mostrar pra vocês!
(batem na porta. Falam ao mesmo tempo ainda mais rápido)
H – O chefe aqui sou eu! eu fiz os planos! A maleta é minha!
C – A maleta é minha! Quem se mexer leva chumbo!
M – Eu vou sair fugir com a maleta custe o que custar! Quem quiser me impedir leva bala!
(batem na porta. Falam ainda mais rápido)
H – Motherfucker, motherfucker, motherfucker!
C – Son of a bitch, son of a bitch, son of a bitch!
M – Fuck you! Fuck you! Fuck you!
(os 3 atiram simultaneamente um no outro e tombam mortos simultaneamente)
Pausa.
Entra, devagar, Melanie, a jovem secretária. Olha para os mortos sem surpresa nenhuma. Cata nos cadáveres as passagens. Pega o telefone do homem e liga.
M – Alô! Capitão Nascimento? Deu tudo certo no nosso plano, amor. Me espera no aeroporto. (desliga e pega a maleta) Caribe, aí vou eu!
(música caribenha. Ela sonha com o caribe, no meio dos cadáveres, até que a luz se apague)
DIRETORA PORNÔ QUER VIRAR DEPUTADA
Cineasta de Filmes pornográficos do Reino Unido deixa a carreira de lado para candidatar-se a uma vaga no legislativo
FOLHA DE SÃO PAULO – ILUSTRADA – DOMINGO 04 DE ABRIL DE2010
TERAPIA DE CASAL
De Ivan Fernandes
Casal de meia-idade no analista.
ELE - Nós estamos passando por problemas.
TERAP - Imagino que seja por isso que me procuraram.
ELE - Mas isso foi depois que procuramos.
TERAP - Que tipo de problemas?
ELE - Os filmes.
TERAP - Não funcionaram?
ELA - Eu adorei os filmes.
ELE - Ela ficou obcecada.
TERAP - Não quebraram a rotina?
ELA - Agora os filmes são a nossa rotina.
TERAP - E qual o problema?
ELE - Ela assiste tudo muito alto. Nossos filhos percebem.
ELA - Mas eles levam as namoradas pro quarto.
ELE - Pois é. E ficam as namoradas lá. Ouvindo. Aquilo.
TERAP - Descreva aquilo.
ELE - Os gritos.
TERAP - Do filme?
ELE - Não! Dela!
ELA - Eu grito melhor do que as namoradas. E mais alto que o filme.
TERAP - Para isso é necessário talento.
ELA - É o que eu digo a ele.
ELE - Os vizinhos já reclamaram. Recebemos uma carta de advertência que foi pregada na portaria.
TERAP - E como vocês se sentiram?
ELA - Eu achei o máximo. Quis emoldurar na parede do nosso quarto. Ele é que não deixou.
ELE - O pior são as roupas.
ELA - Tão bonitas.
ELE - O biquini que ela comprou pra andar pelo clube.
ELA - Igual ao da moça do filme.
TERAP - Qual era o tamanho?
ELE - (mostra) Veja o senhor mesmo.
ELA - Ah, então estava com você?
ELE - Pensa que eu ia deixar você me envergonhar com uma coisa dessas?
ELA - Tá vendo, doutor, ele me tolhe, me reprime, não me deixa explorar minha feminilidade.
TERAP - (entretido com o biquini) Mas a vida sexual de vocês ficou mais ativa?
ELE - Sim.
ELA - Não.
ELE - Não?
TERAP - (sempre entretido com o biquini) E o que falta pra que vocês se sintam... realizados?
ELE - (tirando o biquini do doutor) O que mais eu posso fazer? Até couro com tachinhas já usei.
ELA - Bom... não é sua culpa. É culpa “dele”. O senhor sabe, doutor, o tamanho.
TERAP - Insuficiente.
ELE - Como assim insuficiente? Nós somos casados há trinta anos! Você nunca reclamou!
ELA - Eu não conhecia esses atores dos filmes. Eu nunca tinha visto nada igual.
ELE - Aqueles mastodontes.
ELA - Depois de olhar pra eles, fica difícil me conformar.
ELE - Tá vendo o que seus conselhos fizeram com nosso casamento, doutor?
TERAP - Existem soluções. Próteses, consolos, enchimentos.
ELA- Ele se recusa.
ELE - O senhor não vê como é humilhante pra mim?
ELA - Não é só o tamanho, doutor. O ritmo deles, também, não é brincadeira.
ELE - Eles tomam aqueles remedinhos. Nós vimos no making off.
ELA - Você bem que podia seguir o exemplo.
ELE - Eu sou cardíaco! O remédio sobe a pressão!
ELA - Sem o remédio é que não sobe nada mesmo. Além do mais eu acho muito romântico desafiar o perigo.
TERAP - Acho que temos um ponto aqui. Será que não está faltando um pouco de aventura? Talvez os filmes despertem fantasias.
ELA - É o que eu digo, doutor. Uma noite nós assistimos uma obra-prima. “O melhor de Viviane Popozuda: as melhores cenas de sua carreira. Anal, grupal, lesbianismo, sadomasoquismo, zoofilia, travestis, duplo anal”.
ELE - Duplo anal, doutor. Como é que dois caras aceitam dividir um espaço tão pequeno?
TERAP - Existe todo um treinamento.
ELA - O ponto é que a tal de Viviane tem menos de 20 anos. E já conhece mais da vida que eu em meio século! Eu preciso recuperar o tempo perdido!
TERAP - E você gostaria de submeter seu marido a todas essas fantasias?
ELE - Zoofilia não! Nem pensar!
ELA - Eu propus isso? Propus? Eu falei de uma coisa muito mais simples!
ELE - Um duplo anal!
TERAP - E você aceitou?
ELE - É claro que não! Em mulher minha nenhum marmanjo mete a mão! Nem a mão nem nenhuma outra coisa!
ELA - Seu problema é esse seu moralismo tijucano que não te larga.
ELE - Não vem falar da tijuca não!
TERAP - Para alguns homens pode ser embaraçoso dividir a cama com outro homem.
ELA – Mas eu também propus um trio com mulher, doutor. Só pra quebrar o gelo. Eu, ele e a sobrinha do porteiro.
TERAP - E ele não aceitou?
ELE - Deus me livre. O que é que iam comentar no prédio?
ELA - Olha aí o moralismo tijucano de novo.
TERAP - Foi então que você começou a frequentar os sites da internet?
ELA - Justamente. Eu fiquei maravilhada com a possibilidade de ser observada ao vivo.
TERAP - E o senhor?
ELE - Eu fiquei conhecido como o marido da tarada do 714.
TERAP - Seu site anda muito visitado. Recentemente bateu recorde de acessos. Eu mesmo visitei e fiquei muito impressionado. Deve ser muito lucrativo.
ELA - São mais de dez mil acessos por dia. Foi uma revolução financeira na nossa vida.
ELE - É. Nesse ponto não se pode reclamar.
TERAP - E qual pode ser a razão para tanto sucesso?
ELA - Eu passei a dirigir meus próprios filmes.
TERAP - E o seu marido?
ELA - Alguém tem que segurar a câmera.
ELE - É tudo artístico.
ELA - No início era só coisa leve, eu tirava a roupa em local público, me exibia. Aí uma vez o guarda nos pegou e nos levou pra um lugar deserto. E obrigou meu marido a filmar enquanto ele me... me...
ELE - Ele contracenou com ela.
ELA - E depois nos liberou. Mas disse que o maior sonho dele era ser ator. Era uma fantasia mesmo. E aí eu pensei: igual a ele devem existir tantos. Gente comum, de barriga, careca, pau pequeno, celulite. Não precisa ser modelo sarado. Não precisa ser Viviane Popozuda. E então começamos a abrir participações, a dar chance pra nossos amigos, nosso vizinhos, gente comum. Virou uma postura política, doutor. Contra a ditadura da beleza. E aí virou essa febre toda. Agora todo mundo quer aparecer.
TERAP - Imagino que seja por isso que vieram até aqui com essa câmera.
ELA - Queremos mostrar aquele que deu origem a tudo. Sim, sem o senhor nada disso teria acontecido.
TERAP - Eu fico muito lisonjeado, mas será que vou poder contribuir?
ELA - A idéia é justamente que o senhor contribua. Qual é a sua fantasia?
TERAP - Mas eu nunca participei de uma filmagem antes. Além do mais, não sei se concordo em ser cabo eleitoral.
ELA - Mas será uma campanha revolucionária! Contaremos com o engajamento sexual dos eleitores!
TERAP - Vocês não acham a mensagem muito perigosa?
ELA – Doutor, a idéia de me candidatar não partiu de mim. Surgiu no site. Foi o povo que pediu, doutor. E quando eu for eleita, vou implantar meu projeto nas comunidades e até nas escolas. Todo mundo vai poder fazer os seus filmes. E fazer o papel principal nas próprias fantasias.
TERAP – Parece interessante.
ELA – Junte-se a nós, doutor. Seja mais um. Qual a sua fantasia?
TERAP – Bom, eu... gosto de assistir.
ELE – Assistir?
ELA – Mas meu marido nunca participou!
TERAP – Ainda melhor. A participação dele é fundamental para a conclusão do processo de análise. É o coroamento. Vocês precisam ser um casal unido na frente e atrás das câmeras.
ELE – Mas o que vão dizer no meu trabalho? Além do mais, é uma câmera nova. O senhor vai saber filmar?
TERAP – Isso são meros detalhes. O importante é saber se você aceita contracenar com sua mulher.
ELE – Eu tenho medo. Mas aceito.
TERAP – E você, aceita contracenar com seu marido?
ELA – Apesar de tudo, ele ainda é meu ator preferido.
TERAP – Então, que vocês fiquem juntos até que o “Corta!” os separe. Passa a câmera pra cá. Atenção ao meu comando. É 1, é 2, é 3. Ação!
FIM
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FOLHA DE SÃO PAULO – ILUSTRADA – DOMINGO 04 DE ABRIL DE2010
TERAPIA DE CASAL
De Ivan Fernandes
Casal de meia-idade no analista.
ELE - Nós estamos passando por problemas.
TERAP - Imagino que seja por isso que me procuraram.
ELE - Mas isso foi depois que procuramos.
TERAP - Que tipo de problemas?
ELE - Os filmes.
TERAP - Não funcionaram?
ELA - Eu adorei os filmes.
ELE - Ela ficou obcecada.
TERAP - Não quebraram a rotina?
ELA - Agora os filmes são a nossa rotina.
TERAP - E qual o problema?
ELE - Ela assiste tudo muito alto. Nossos filhos percebem.
ELA - Mas eles levam as namoradas pro quarto.
ELE - Pois é. E ficam as namoradas lá. Ouvindo. Aquilo.
TERAP - Descreva aquilo.
ELE - Os gritos.
TERAP - Do filme?
ELE - Não! Dela!
ELA - Eu grito melhor do que as namoradas. E mais alto que o filme.
TERAP - Para isso é necessário talento.
ELA - É o que eu digo a ele.
ELE - Os vizinhos já reclamaram. Recebemos uma carta de advertência que foi pregada na portaria.
TERAP - E como vocês se sentiram?
ELA - Eu achei o máximo. Quis emoldurar na parede do nosso quarto. Ele é que não deixou.
ELE - O pior são as roupas.
ELA - Tão bonitas.
ELE - O biquini que ela comprou pra andar pelo clube.
ELA - Igual ao da moça do filme.
TERAP - Qual era o tamanho?
ELE - (mostra) Veja o senhor mesmo.
ELA - Ah, então estava com você?
ELE - Pensa que eu ia deixar você me envergonhar com uma coisa dessas?
ELA - Tá vendo, doutor, ele me tolhe, me reprime, não me deixa explorar minha feminilidade.
TERAP - (entretido com o biquini) Mas a vida sexual de vocês ficou mais ativa?
ELE - Sim.
ELA - Não.
ELE - Não?
TERAP - (sempre entretido com o biquini) E o que falta pra que vocês se sintam... realizados?
ELE - (tirando o biquini do doutor) O que mais eu posso fazer? Até couro com tachinhas já usei.
ELA - Bom... não é sua culpa. É culpa “dele”. O senhor sabe, doutor, o tamanho.
TERAP - Insuficiente.
ELE - Como assim insuficiente? Nós somos casados há trinta anos! Você nunca reclamou!
ELA - Eu não conhecia esses atores dos filmes. Eu nunca tinha visto nada igual.
ELE - Aqueles mastodontes.
ELA - Depois de olhar pra eles, fica difícil me conformar.
ELE - Tá vendo o que seus conselhos fizeram com nosso casamento, doutor?
TERAP - Existem soluções. Próteses, consolos, enchimentos.
ELA- Ele se recusa.
ELE - O senhor não vê como é humilhante pra mim?
ELA - Não é só o tamanho, doutor. O ritmo deles, também, não é brincadeira.
ELE - Eles tomam aqueles remedinhos. Nós vimos no making off.
ELA - Você bem que podia seguir o exemplo.
ELE - Eu sou cardíaco! O remédio sobe a pressão!
ELA - Sem o remédio é que não sobe nada mesmo. Além do mais eu acho muito romântico desafiar o perigo.
TERAP - Acho que temos um ponto aqui. Será que não está faltando um pouco de aventura? Talvez os filmes despertem fantasias.
ELA - É o que eu digo, doutor. Uma noite nós assistimos uma obra-prima. “O melhor de Viviane Popozuda: as melhores cenas de sua carreira. Anal, grupal, lesbianismo, sadomasoquismo, zoofilia, travestis, duplo anal”.
ELE - Duplo anal, doutor. Como é que dois caras aceitam dividir um espaço tão pequeno?
TERAP - Existe todo um treinamento.
ELA - O ponto é que a tal de Viviane tem menos de 20 anos. E já conhece mais da vida que eu em meio século! Eu preciso recuperar o tempo perdido!
TERAP - E você gostaria de submeter seu marido a todas essas fantasias?
ELE - Zoofilia não! Nem pensar!
ELA - Eu propus isso? Propus? Eu falei de uma coisa muito mais simples!
ELE - Um duplo anal!
TERAP - E você aceitou?
ELE - É claro que não! Em mulher minha nenhum marmanjo mete a mão! Nem a mão nem nenhuma outra coisa!
ELA - Seu problema é esse seu moralismo tijucano que não te larga.
ELE - Não vem falar da tijuca não!
TERAP - Para alguns homens pode ser embaraçoso dividir a cama com outro homem.
ELA – Mas eu também propus um trio com mulher, doutor. Só pra quebrar o gelo. Eu, ele e a sobrinha do porteiro.
TERAP - E ele não aceitou?
ELE - Deus me livre. O que é que iam comentar no prédio?
ELA - Olha aí o moralismo tijucano de novo.
TERAP - Foi então que você começou a frequentar os sites da internet?
ELA - Justamente. Eu fiquei maravilhada com a possibilidade de ser observada ao vivo.
TERAP - E o senhor?
ELE - Eu fiquei conhecido como o marido da tarada do 714.
TERAP - Seu site anda muito visitado. Recentemente bateu recorde de acessos. Eu mesmo visitei e fiquei muito impressionado. Deve ser muito lucrativo.
ELA - São mais de dez mil acessos por dia. Foi uma revolução financeira na nossa vida.
ELE - É. Nesse ponto não se pode reclamar.
TERAP - E qual pode ser a razão para tanto sucesso?
ELA - Eu passei a dirigir meus próprios filmes.
TERAP - E o seu marido?
ELA - Alguém tem que segurar a câmera.
ELE - É tudo artístico.
ELA - No início era só coisa leve, eu tirava a roupa em local público, me exibia. Aí uma vez o guarda nos pegou e nos levou pra um lugar deserto. E obrigou meu marido a filmar enquanto ele me... me...
ELE - Ele contracenou com ela.
ELA - E depois nos liberou. Mas disse que o maior sonho dele era ser ator. Era uma fantasia mesmo. E aí eu pensei: igual a ele devem existir tantos. Gente comum, de barriga, careca, pau pequeno, celulite. Não precisa ser modelo sarado. Não precisa ser Viviane Popozuda. E então começamos a abrir participações, a dar chance pra nossos amigos, nosso vizinhos, gente comum. Virou uma postura política, doutor. Contra a ditadura da beleza. E aí virou essa febre toda. Agora todo mundo quer aparecer.
TERAP - Imagino que seja por isso que vieram até aqui com essa câmera.
ELA - Queremos mostrar aquele que deu origem a tudo. Sim, sem o senhor nada disso teria acontecido.
TERAP - Eu fico muito lisonjeado, mas será que vou poder contribuir?
ELA - A idéia é justamente que o senhor contribua. Qual é a sua fantasia?
TERAP - Mas eu nunca participei de uma filmagem antes. Além do mais, não sei se concordo em ser cabo eleitoral.
ELA - Mas será uma campanha revolucionária! Contaremos com o engajamento sexual dos eleitores!
TERAP - Vocês não acham a mensagem muito perigosa?
ELA – Doutor, a idéia de me candidatar não partiu de mim. Surgiu no site. Foi o povo que pediu, doutor. E quando eu for eleita, vou implantar meu projeto nas comunidades e até nas escolas. Todo mundo vai poder fazer os seus filmes. E fazer o papel principal nas próprias fantasias.
TERAP – Parece interessante.
ELA – Junte-se a nós, doutor. Seja mais um. Qual a sua fantasia?
TERAP – Bom, eu... gosto de assistir.
ELE – Assistir?
ELA – Mas meu marido nunca participou!
TERAP – Ainda melhor. A participação dele é fundamental para a conclusão do processo de análise. É o coroamento. Vocês precisam ser um casal unido na frente e atrás das câmeras.
ELE – Mas o que vão dizer no meu trabalho? Além do mais, é uma câmera nova. O senhor vai saber filmar?
TERAP – Isso são meros detalhes. O importante é saber se você aceita contracenar com sua mulher.
ELE – Eu tenho medo. Mas aceito.
TERAP – E você, aceita contracenar com seu marido?
ELA – Apesar de tudo, ele ainda é meu ator preferido.
TERAP – Então, que vocês fiquem juntos até que o “Corta!” os separe. Passa a câmera pra cá. Atenção ao meu comando. É 1, é 2, é 3. Ação!
FIM
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A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PUNKS
De Ivan Fernandes
(A mãe bate na porta fechada do quarto do filho)
M - Chuvisco! Sai agora desse quarto! Todos os seus parentes estão aqui pra te ver! É o seu almoço de despedida!
C - Almoço é uma instituição falida! E pára de me chamar de Chuvisco!
M - A vovó só está esperando você aparecer pra servir! E o vovô veio de farda completa!
C - Comam sem mim! Eu não tenho nada pra comemorar!
M – Anda, filho! Amanhã você vai embora pra academia! Todo mundo veio se despedir.
C - Todo mundo quem? Só veio parente. Nenhum amigo meu.
M - Não dava pra chamar os teus amigos, né, meu filho? Aquele bando de gente esquisita. Todo mundo rasgado! Todo mundo cheio de alfinete!
C - Que culpa eles tem de ser assim? É o mundo que tá apodrecendo!
M - E daí? A gente tá na Tijuca. A Tijuca não tá apodrecendo.
Entra tio Renato
R - E aí, conseguiu?
M -Tá trancado aí o dia inteiro e não quer sair. Eu não sei o que eu faço com esse menino, Renato. Ele passa a noite acordado! Pregando tachinha na roupa. Ele estraga as roupas que a gente compra! E agora deu pra usar um cabelo que.
R - Posso tentar falar com ele?
M (falando para o quarto) - Está aqui o tio Renato. Tio Renato também não tá apodrecendo.
R - Chuvisco!
C - Chuvisco é a tua mãe!
R - Abre, Ivan, é o Renato.
Chuvisco sai do quarto e aparece em cena. Está vestido à moda punk: camisa preta dos Ramones, correntes, alfinetes, coturno, cabelo moicano.
R - Tudo bem?
C - Tudo bem. (grita para a mãe) Fora o tédio que me consome pelas 24 horas do dia! Fora a frustração de ontem, a decepção de hoje e a indiferença crônica do amanhã!
R - Quê isso, moleque?
C - Nada não, é só pra manter o clima. Entra aí. (entram. A mãe vai entrar e ele fecha a porta na cara dela. Tio Renato tira da bolsa uma fita de vídeo)
R - Teu presente.
C - Caramba! Warriors! Selvagens da noite! É o meu filme preferido!
R - Eu sei. Passou ontem na tv e eu gravei pra você.
C - É. Mas não adianta que eu não vou descer pra almoçar.
R - Tudo bem. Não vim aqui te dizer nada não. Só queria fumar um cigarro. Na frente do vovô não pega bem, você sabe.
C - É verdade que ele veio de farda?
R - Tá usando até a espada. Tá suando pra caralho na frente daquele ventiladorzinho. (riem) Você não acha que tá pegando pesado com a tua mãe?
C - Eu não quero ir pra academia, tio. Eu não quero ir pra aeronáutica.
M (que ouve tudo grudada na porta) - A gente já conversou sobre isso, Chuvisco!
R – É. Acho que vai ser um almoço bem movimentado.
C - A mãe não me vê quando olha pra mim. Ela só vê o filho que ela queria ter.
R - Ela só tá preocupada com o teu futuro.
C - (berra para a porta) No future! Nooooo fuuutuuure!
M - Eu tenho um filho louco! Vou te mandar pra Juliano Moreira! Vão te confundir com o Bispo do Rosário!
R - Tá bom, olha só: vamos abrir a porta e conversar que nem gente normal?
(abre a porta. A mãe entra no quarto.)
M - (se controlando) Eu não tinha pedido pra você tirar esse cabelo pelo menos nesse almoço? Eu não tinha te pedido numa boa?
C - Numa boa eu não vou cortar meu moicano.
M - Que diferença faz? Na academia vão cortar mesmo!
C - Mas aí não é numa boa.
M - Teu avô arrumou essa vaga com tanto esforço! Você sai de lá formado! Oficial! Tanta gente queria ficar no seu lugar e você nada! Se na escola normal você tivesse bem, vá lá. Mas o teu boletim parece o mar vermelho!
R - E aquele empreguinho de boy lá no banco que eu te ofereci?
C - O gerente queria que eu cortasse o meu moicano.
M - Quem tem um cabelo desse não quer arrumar emprego!
C - Um emprego eu quero arrumar só não quero é cortar meu moicano.
M - Ai juventude que não passa! Adolescência que não deixa a cabeça dessa criatura! Um dia você vai olhar sua foto e vai dizer “como eu era ridículo!”
C - De jeito nenhum! Você não disse que quando eu nasci só tinha uma faixa de cabelo arrepiado no meio da cabeça? Eu nasci punk e vou morrer moicano!
R - Mas você virou revoltado assim, de repente? Sem onde nem por que?
C - Eu tenho um porque. O meu porque é assim numa de. É como se fosse assim, saca? É como se não tivesse porque. Não tem explicação.
R – Tá bom, não existe só banco e avião nesse mundo. E se você pudesse escolher alguma coisa?
C - Eu quero gritar! Eu quero expressar o que tá dentro de mim!
Até todo mundo ouvir!
R - Mas o que é que tá dentro de você, afinal?
C - (desanima) Não sei. (pausa)
M - Você tá perto de ficar adulto.
C - Eu tô perto de tanta coisa e longe de tudo.
M - Engraçado. Eu me lembro de quando você era neném. Você era tão tranquilo. Você não imagina como você era tranquilo. Eu tinha que deixar você pra trabalhar, e eu ia com a cabeça tão pesada, mas você não chorava, nunca chorou. E quando eu voltava você abria um sorriso, você ainda não falava mas abria um sorriso, um sorriso que eu não vejo há tanto tempo. E hoje eu sinto tanta saudade, mas uma saudade tão grande, de ter o meu filhinho de novo, de não ter aproveitado essa maravilha que não volta, cada segundo, cada minuto que eu perdi longe de você. Eu tento me lembrar de tudo, do que eu fiz e do que eu não fiz, e eu me sinto culpada o tempo todo, o tempo todo. Eu não aguento olhar pra você e te ver infeliz. Eu não entendo por que você vê tudo apodrecendo. Eu só queria entender por que. Não precisa ir pra academia. Eu falo com o seu avô. Você só precisa ser feliz, meu filho. Faz as pazes com a vida. Ser adulto não é fácil pra ninguém. E você não vai poder ficar pra sempre dentro desse quarto. (sai)
R - Tenta entender. Tem sido difícil pra ela. Desde que o seu pai.
C - Você não acha que tudo ia ser diferente? Se ele tivesse aqui.
R - De verdade? Acho que teu pai não vai chegar num cavalo branco pra te salvar da vida, Ivan. Não vai chegar nunca. Tá na hora de encarar isso. (pausa. Ele termina seu cigarro.) Bom, eu vou ajudar a tua mãe a segurar a barra do vovô. (vai saindo, pára) Por que você não tenta escrever? Essas coisas que você quer gritar. Quem sabe alguém não acaba ouvindo.
C - Você diz um diário? Diário é coisa de garota!
R - Sei lá. O que você quiser. Diário, história, poesia, peça de teatro. Nem você sabe o que quer dizer. Pelo menos assim você descobre.
C – Quê que adianta eu escrever uma peça de teatro? Ninguém vai se interessar por isso.
R - Quem sabe. Um dia. Com sorte. Sem tentar é que não dá pra saber.
(sai. Chuvisco fica sozinho um tempo. Apanha um caderno e começa a escrever.)
A PRIMEIRA VEZ
De Ivan Fernandes
Caim e Abel. O primeiro se dedica a polir uma espécie de porrete de osso, quando o segundo entra.
A - Hey brother.
C - Hey brother.
A - o senhor nos mandou arar o campo com nosso suor.
C - Deixa isso pra lá, Abel. Tá um sol dos infernos. A vida não tem sido fácil desde que papai e mamãe foram despedidos.
A - Por isso mesmo. Precisamos ajudar no orçamento. Reconquistar a confiança do Senhor.
C - O quê? Puxar o saco daquele Velho? Jamais! Esquece o que ele fez com os nossos pais? Prefiro a morte.
A - Você diz isso porque não conhece a morte. Dizem que é muito pior do que isso aqui.
C - Ah, é? Quem disse?
A - O pai. A mãe.
C - (imita) O pai. A mãe. Se não fosse por eles, a gente não estaria aqui.
A - (irônico) Ah, não? estaria aonde? Você, com seu talento enorme, estaria aonde?
C - Eu não fui feito pra isso, Abel. Eu sempre fui o homem das idéias. Arar o campo com meu suor? Não é justo que eu pague por uma coisa que eu não fiz.
A - O mundo é assim, maninho. Uns ficam do lado de dentro, outros do lado de fora. A gente tá do lado de fora. Mas eu vou passar pra dentro de novo. Se tu quiser tu cola na minha que tu se dá bem.
C - Não obrigado. Prefiro fazer do meu jeito.
A - Como? Com as suas invenções?
C - A minha invenção vai mudar o nosso mundo, Abel.
A - Um pedaço de osso de bicho? Você tem a cara de pau de dizer que inventou isso? Você catou isso nessas fossas por onde você anda! Restos da morte! E pra quê isso serve?
C - Pra causar a morte.
A - A quem isso interessa, Caim?
C - Assim não precisamos arar esses malditos campos. Você não pára pra pensar na exploração? Um quinto do que a gente planta vai direto pro Velho! Um quinto! E pra quê? Pra ele aplicar tudo do lado de dentro dos muros! E a gente que se foda!
A - Não fala assim, mané. Algum anjo desses ouve e vai voando caguetar.
C - Foda-se. É pra isso que serve o meu invento. Pra gente nunca mais depender do Velho. Eu vou tirar dele o monopólio da morte, sacou? A gente agora pode caçar, matar o bicho que quiser. Bichos maiores que a gente, Abel. Ele que pegue os anjos pra semear os campos.
A - Por que você sempre quer resolver as coisas sozinho? Tudo aqui tem um sistema, não percebeu ainda?
C - Com a minha invenção, eu tô fora do sistema.
A - (avança para o osso) Me dá isso aqui! Eu não vou deixar você queimar ainda mais o nosso filme.
C – (protege o osso) Ei, tá maluco?
A - Já chega o que a nossa mãe aprontou. Você é igualzinho a ela. Não consegue ficar quieto no seu canto.
C – Você tá é com inveja do meu invento!
A - Não funciona! Você não entende? Essa merda não funciona! Você passa os seus dias debruçado nesse brinquedo inútil! Cresce, Caim!
C - Você é que tá cego, Abel. Fizeram uma lavagem cerebral em você.
A - Só o Senhor pode trazer a morte. Como é que você tem a petulância? Por que você não pode aceitar o seu lugar? Se a nossa mãe tivesse aceitado o lugar dela, a gente tava lá dentro até hoje! Mas eu não vou ser igual ao pai. Não vou me foder por sua causa. Mas não vou mesmo! Vou quebrar essa merda agora e você vem arar os campos comigo!
C - (avança para Abel) Quem é você pra mandar em mim? O que você quer ganhar puxando o saco do Velho dessa maneira? Quer ser o funcionário do mês?
(brigam pelo osso)
A - Eu quero a liberdade!
C - Eu também!
A - Você não. Você quer o caos. Você quer a anarquia. É por isso que você não passa de um fracassado! Você e esse invento que não funciona!
C - Funciona!
A - Funciona porra nenhuma!
(Caim bate em Abel com o osso. Abel cai. Pausa. Caim deixa cair o osso)
C - Hey brother. (silêncio. ) Brother. (silêncio) Funciona?
Aparece um anjo
AN- O que fizeste, Caim?
C - Isso é a morte?
AN - O Senhor vai ficar uma fera. Tinha que ser bem no meu plantão?
C - Eu não sabia! Eu não quis! Traz ele de volta!
AN - Tá pensando que é assim? Não tem volta não, meu filho. Fez, tá feito. É por isso que o Senhor não queria esse brinquedo na mão de vocês. Aproxime-se para a punição.
C - Punição? Por que?
AN - Qual parte de não matar você não entendeu? Você vai ser marcado e banido. Temos que isolar o foco ou isso se espalha lá pra dentro.
C - Mas eu já fui banido! A gente vive fora do paraíso!
AN - Mas coladinho no muro. Você que reclamava, agora vai conhecer o subúrbio.
C - Pois você acha que eu tenho medo? Agora eu não preciso mais do Velho! Eu consigo o que eu quiser! Posso dominar todos! E vou fundar uma raça de homens sem medo, e um dia nós vamos voltar pra tomar o paraíso de volta!
(sai. Luz de pino celestial sobre o corpo de Abel. Anjo entra na luz e fala em direção aos céus)
AN - Acidente fora do portão. Morte. Sim, morte. Alguém pra me ajudar com o corpo. É preciso reforçar o portão. A morte apareceu pela primeira vez. E tudo indica que ela vai voltar.
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TEMPORAL ALAGA RUAS E DEIXA O TRANSITO CAÓTICO
Chuva Forte causa transtornos em todas as regiões da cidade, afeta metrô e deixa sem luz trechos de 6 bairros
Jornal o Globo – Rio – domingo 07 de março de 2010
BICHOS ESCROTOS
De Ivan Fernandes
Luz sobre Repórter Barata.
RB - Boa noite, baratas e seres das profundezas. Está entrando no ar a sua TV ESGOTO. Nosso assunto de hoje é a temporada turística que está bombando aqui na nossa cidade maravilhosa cheia de bueiros mil. São as águas de março fechando o verão. Só se for agora. No temporal de ontem pudemos ver famílias inteiras de ratos curtindo um passeio à luz do dia, o acasalamento dos mosquitos da dengue, além das nossas baratas craques em esportes radicais como surf em saco de lixo e rasante kamikase em cabelos. É por isso que a cada ano milhões de bichos escrotos procuram nossas vielas e becos atrás de esporte e diversão. E as previsões de hoje são para mais chuva! Preparem suas anteninhas que teremos mais dicas e imagens inéditas pra você. Está entrando no ar a minha, a sua, a nossa... BUEIROLÂNDIA!
(música: Bichos Escrotos. Se possível, imagens no telão mostrando ruas alagadas)
(Luz sobre Zé Rato)
ZR - Uai, sô! Desde filhotinho eu sonho com esse momento. Cidade maravilhosa mesmo. Muito mais bonita ao vivo do que na televisão. Terra onde a comida cai do céu. (encontra um saco de biscoito no chão). Não disse? Migalha de biscoito! E uma borrachinha de pneu velho pra acompanhar. (faz um lanche)
Entra Rato Rooter
RR - Primo Zé Rato!
ZR - Ô! Primo Rato Rooter! Vem de lá um abraço, sô!
(abraçam-se)
RR- Acabei de receber a notícia que você fugiu do laboratório!
ZR- Aquilo inundou com o temporá. Ocê tinha que ver, primo: as vacina tudo boiando igual tronco no rio. Minha gaiola virou e eu aproveitei.
RR - Aproveitou mesmo. Já tá enchendo a pança primo?
ZR - Num tô acostumado com essa fartura. Lá no laboratório era tudo a conta-gota.
RR - Pois aqui é assim. Mas guarda espaço aí no estômago que hoje tem temporal. (ruído de trovão e chuva) Não disse? Olha só, primo, os bueiro tudo enchendo, as queda d’água, que maravilha. Vem primo de tudo quanto é canto do mundo pra ver.
ZR - É lindo mermo, primo.
RR - Vou te fazer um pacote turístico completo, primo. Sabe o que a gente vai fazer agora? Dar um susto nos gigantes. Quando eu contar 3 você sai do bueiro e agarra a perna do primeiro. Vamo lá, é 1, é 2... é 3! Vai!
(Zé Rato sai correndo do bueiro gritando e fazendo careta. Voz em off humana)
OFF - Oh, que gracinha, um ratinho. Tadinho, tá todo molhado de chuva. Vai pegar uma pneumonia. Vem com a titia, vem.
RR - Essa não, esqueci. Ninguém tem medo de rato branco. (sai correndo do bueiro gritando e fazendo careta)
OFF - AAAAAHHHH!!! Um raaaattttoooo!!!!! Uma ratazana horrível!
(os dois ratos riem)
ZR - Pô, valeu mermo, primo. Quase que eu caio de novo nas garras dos gigante.
RR - Tem que ficar ligado, primo. Em terra de bueiro, hamster vira enfeite de boutique. Vamo passar uma laminha pra disfarçar essa palidez. (passa lama no primo) Pronto. Agora tu parece um dos nossos.
ZR - E o que mais tem de bão por aqui?
RR - Tava quase esquecendo. Tá na hora do balé aquático das lacraias.
ZR - Oba! Lacraia! Adoro perna!
RR - Lá vem uma! (passa uma lacraia nadando) Olha como ela nada rápido. E com as 50 pernas que sobram ela faz a coreografia. Se liga na cruzada de pernas.
ZR - E com esse biquininho então... Vai lacraia, vai lacraia! Vai lacraia, vai lacraia!
RR - Essa aí é medalha de ouro!
(sai a lacraia, sempre nadando)
ZR - Ô primo, eu tô achando tudo muito bão, mas só me preocupo com uma coisa: como é que eu vou me sustentar? Lá no laboratório, bem ou mal, eu tinha um emprego.
RR - Se preocupa com isso não, primo. Essa cidade é igual placenta de mãe: sempre cabe mais um.
ZR - Mas ocê, como é que faz? Ocê num tem emprego não?
RR - Eu vivo da economia informal.
ZR - E cumé que é isso?
RR - Quando eu cheguei você não tava atracado com um saco de biscoito? Pois é assim que funciona. Basta ficar ligado onde os gigantes jogam essas coisas fora.
ZR - Mas onde é?
RR - Em qualquer lugar, primo. É na rua, na calçada, pela janela... aí é só ficar posicionado no bueiro mais próximo. Mais cedo ou mais tarde, o que eles jogam fora vai passar por ali. Um bueiro bem localizado aqui nessa cidade custa caro, primo. Mas você pode tentar os lixões a ceú aberto também. O que não falta aqui é espaço pra quem quer trabalhar.
ZR - Disposição não me falta. Eu sou brasileiro e não desisto nunca.
RR - Assim é que se diz, primo. E agora você me dá licença que eu quero aproveitar o temporal pra pegar umas ondas. Se maomé não vai à praia, a praia vem a maomé. É ou não é?
ZR - Esse maomé também é seu primo?
RR - Deixa pra lá. Fique à vontade, primo, não faça cerimônia. A cidade é sua!
ZR - Pode deixar primo. E boa praia pra ocê e pro seu primo maomé. (sai rato rooter) E ocê pode deixar que eu vim pra ficar. Nunca mais eu vou me separar da cidade maravilhosa. Cidade onde o lixo cai do céu. Cidade das cachoeira de esgoto. Cidade onde minha alma canta de felicidade. Cidade que me dá vontade de dançar.
(música: singing in the rain. Zé Rato ensaia uns passinhos à la gene kelly, enquanto luz vai baixando).
FIM
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CADEIA
De Ivan Fernandes
Luz sobre João e Juliana de mãos dadas. Ele tem manchas de suor debaixo dos braços.
JO – Juliana, tu sabe que eu gosto de ti há muito tempo, não sabe? E se eu pedi pra te chamar aqui, foi pra te provar que meu sentimento é sério. (tira um anel do bolso) Eu quero me casar contigo, Juliana.
JU – (pega o anel) Esse anel é de tampa de garrafa pet.
JO – Aqui não entra metal. Mas ele é o símbolo. Quando eu sair daqui te descolo um de verdade.
JU – Você disse “descolo” e não disse “compro”. É porque vai sair igualzinho entrou.
JO – Mas até assim você me esnoba? Eu falei com o pastor daqui de dentro e ele falou que casa a gente na próxima visita.
JU – E eu vou ter que entrar na fila do xadrez vestida de noiva? E quanto tempo vai durar a lua de mel, João? A gente aqui só tem direito a 15 minutos.
JO – Mas isso é só por enquanto, coração. Tô entrando em redução da pena. Logo eu tô fora daqui. Como eu posso te provar que ninguém vai te fazer mais feliz do que eu?
JU – Você podia começar tomando um banho. Isso lá é jeito de receber uma noiva?
JO – Mas aqui tem racionamento, coração, eu já te disse...
JU – Também, xadrez furreca esse. A Vânia tá namorando um cara lá na polinter. Diz que lá eles tomam banho todo dia. Até ela pode tomar banho depois da visita.
JO – Tua irmã sempre foi muito da interesseira.
JU – Mulher de bandido, João, não sei não. se ainda fosse na polinter. Diz que lá é igualzinho um hotel. (soa um sinal) Viu? Se fosse nossa lua de mel, já tinha acabado.
JO – (enquanto ela sai) Você casa? Semana que vem?
JU – Sem banho, nada feito.
JO - Eu te espero de banho tomado! Eu juro!
Luz sobre Correria.
CO – Não dá pra mexer na escala de banho não, Paraíba. Teu número é 42 e a gente ainda tá no 29. Se eu passar você na frente, já viu. Gritaria geral.
JO – Porra, há mais de uma semana que eu não caio na escala. Amanhã é o meu casamento.
CO - E desde quando tu arruma mulher, Paraíba?
JO – É sério, Correria. Eu sou capaz de qualquer serviço em troca de um banho. Até serviço sujo.
CO – Tua pena é leve, Paraíba. Vai se sujar por causa de um banho, mané? Nenhuma mulher vale um dia a mais aqui dentro.
JO – O que ela vale quem sabe sou eu, Correria. Tu encomenda o serviço que eu faço.
CO – Tem um serviço aí. Mas pensa bem.
Luz sobre Arigozinho fumando uma pedra de crack. João se aproxima.
JO – Só na pedra, hein, Arigozinho?
AR – Lembra quando a gente era criança e brincava de pedra papel e tesoura? Eu pedia pedra sempre. Parece que tava adivinhando.
JO – Só que essa pedra aí tinha dono, Arigozinho.
AR – Também lembro o dia que a gente rodou. Você botou a cabeça aqui dentro e me disse: um dia a menos. Falta um dia a menos pra gente sair.
JO – Aqui é pegue-pague. Não pagou, fodeu. E não é a tua primeira vez.
AR – Você teve cabeça, João. Se pegou com a Igreja. Pior eu. Eu que não saio mesmo daqui. Só com os pé pra frente.
JO – É por isso mesmo que eu... Tem sempre alguma coisa que acaba virando a cabeça da gente.
AR – Ouvi dizer que tu vai casar. Eu fico muito satisfeito. Era aquela morena, não era? Vi de longe, no dia da visita. Tava noiado, não quis chegar perto. Mas achei igual quando a gente era criança. Eu pedia pedra, você papel. E você ganhava sempre.
JO – Eu te avisei tanto, Arigozinho. Te levei pra Igreja e você deu as costas.
AR – Eu sempre digo que você vai sair logo. Eu tenho o maior orgulho disso. Posso assistir teu casamento? Eu fico lá de fora. Sou igual você: não quero que ninguém me veja.
JO – Você vai ajudar no meu casamento, Arigozinho. Você vai ser quase um padrinho.
AR – Sério?
JO – Só com os pé pra frente, Arigozinho. (pausa)
AR - O que você tem aí na mão?
JO – Só um terço. (pausa. Os dois ficam se olhando)
AR – Sei. (virando) Daqui da janela dá pra ver o cristo, sabia? Lá bem longe atrás dos morros. Aqui o Cristo é igual o sol; nasce quadrado.
JO – Fica assim, olhando pra ele, sem olhar pra mim. Pede perdão pela gente.
AR – (sem olhar para João) João. Tu me faz um último favor? Não conta pra nossa mãe que foi assim. Diz que eu tava arrumado, de terno. Que eu tinha todos os dentes. E que todo mundo chorou.
(João enforca Arigozinho com o terço)
Luz sobre Juliana. Ela fala como a personificação de uma carta.
JU – João. Tô te mandando esta carta pela mãe do seu Barbosa que também taí. Ontem a Vânia me levou na visita da polinter. Você precisa ver que beleza é aquilo lá. Até o nível das pessoas lá dentro é diferente, tem gente que tem faculdade e tudo. Outro papo, sabe? Ai, João, olha, eu não nasci pra beber guaraná quente. Lá tem freezer e tudo. Desde pequena eu sonho com um casamento e eu tenho que pensar no melhor pra mim. Espero que você entenda. Você é alguém muito especial e tenho certeza que nesse mundo grande tem uma mulher guardada pra você. Só que não sou eu.
Luz sobre João, sem camisa, com o terço em volta do pescoço. Entra Correria.
CO - Ô Paraíba, o pessoal lá na igreja tá perguntando o que fazer.
JO - Não ganhei o banho? Vou tomar meu banho.
CO - Mas a visita já vai terminar.
JO – Não dispensa eles não. Diz que eu não demoro.
CO – Não demora? Do jeito que tu procurou por esse banho, eles vão ter que descer aqui pra te arrancar.
JO – Só com os pés pra frente, Correria. Só com os pés pra frente.
CO – Mas vem cá, tu vai tomar banho de terço?
JO - A gente nunca sabe quando vai precisar. Diz pra eles irem rezando. Não, diz pra eles cantarem. Eu quero música.
(Correria sai em direção ao corredor, João sai em direção ao banho)
FIM
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ENQUANTO ELE TRABALHA
De Ivan Fernandes
Uma empregada em uniforme executa algumas ações de limpeza como varrer ou espanar. Entra a patroa
P - Selma, você esteve no meu quarto hoje?
E - Eu dei uma varrida, rápida, mas se a senhora não gostou eu posso varrer de novo.
P - Onde está o meu cordão de ouro?
E - Cordão?
P - Sumiu. Meu cordão sumiu.
E - (empalidece) Minha nossa senhora, dona Augusta. Nem brinca com uma coisa dessa.
P - Sabe quantos meses de salário seu custa um cordão daquele, Selma?
E - Mas eu nem sei que cordão é esse.
P - Então você não vai se incomodar se eu chamar a polícia.
E - Polícia? Mas polícia pra quê?
P - Pra olhar dentro da sua bolsa e procurar o meu cordão. (pausa)
E - Não tem outra forma de resolver isso, dona Augusta?
P - Ah, então confessa!
E - Não confesso nada! A senhora não percebe que isso é uma invasão? Depois de abrir minha bolsa, eu jamais vou poder trabalhar pra senhora de novo.
P - E agora me ameaça! Eu venho tolerando seus maus modos há muito tempo, menina. Deixa o meu marido chegar do trabalho que você vai ver.
E - (entrega a vassoura a Augusta) Pois eu vou lhe dizer uma coisa, dona Augusta. Vou embora e dessa casa não quero nem o pó.
P - Não! Espera Selma!
E - Adeus! (vai até a porta. Antes de sair, tira o sapato e bate o pó)
P - Meu sapato! Você tá usando os meus sapatos de festa! Tô a dias procurando!
E - (surpreendida, sem graça) É que eu tenho um igual...
P - Ladra! Você não passa de uma ladra! É isso que você é! Eu vou chamar a polícia agora!
E - (voltando) Não, dona Augusta! Por favor! Eu posso explicar! É que... é...
P - Bem dentro da nossa casa! O que meu marido vai dizer quando chegar?
E - (explodindo) É que eu queria ser igual à senhora! Saber andar igual à senhora! A senhora é tão melhor do que eu! Quando a senhora sai eu uso as suas roupas, mas é só pra sentir como deve ser assim. Ser a senhora. Ser o seu espelho. Eu imito a sua forma de andar. De falar. Eu imito a brancura dos seus braços. (chora) Eu faço o que a senhora quiser, mas polícia não, por favor!
P - Então é por isso que minhas roupas aparecem manchadas. O que você acha que merece?
E - (humilde) Qualquer castigo, menos polícia.
P - Pois quando meu marido chegar vou contar tudo pra ele e...
(a empregada interrompe a patroa com um sonoro tapa no rosto)
P - E isso agora?
E - (mais humilde) Desculpe.
P - Acha que eu vou tolerar isso dentro da minha casa? Pensa que vai bater na minha cara e sair por aquela porta?
E - Eu...
P - (grita) De joelho! ( a empregada obedece) Você deixou de ser minha empregada. Você agora é minha escrava. Eu tenho direito sobre você. Eu sou a dona da sua alma. Entendeu?
E - Sim, senhora.
P - Beija os meus pés. (lentamente, a empregada engatinha até os pés da patroa e começa a beijá-los) É pouco. Lambe. (a empregada lambe os pés) Isso é fácil pra você? Pois eu acho que é pouco. Pouco pelo seu atrevimento. Vem aqui. (levanta a empregada pelos cabelos. Estão em frente a um espelho imaginário) Olhe bem pra você. Olhe como o seu reflexo empobrece o espelho. Como ousa se parecer comigo? Quem é você?
E - Só uma empregada.
P - Escrava. Minha escrava, isso que você é.
E - Sua escrava.
P - E quem sou eu?
E - A senhora é uma deusa.
P - Por isso eu nunca vou ser tocada por você. Por isso eu estou fora do seu alcance. Sou eu no céu e você na terra. (a empregada puxa pra si a boca da patroa. Beijam-se)
P - (lenta) Cada vez mais insolente.
E - (humilde) Desculpe.
P - Estou cansada das suas desculpas.
E - Eu faço o que a senhora quiser.
P - Você vai ser punida.
E - Por favor...
P - Castigada.
E - Por favor...
P - Você vai ser comida como nunca na vida você foi.
(a empregada desmaia nos braços da patroa. A patroa sai, carregando a empregada nos braços como uma noiva. Tempo. Entra Olavo, de terno e gravata.)
O - Querida! Cheguei! Tira o paletó, afrouxa a gravata. Senta-se na poltrona. Augusta! Tá em casa?
ENTRA A ATRIZ QUE FAZIA A EMPREGADA, VESTIDA COM AS ROUPAS QUE FORAM USADAS POR AUGUSTA.
E - Cedo, hoje, Olavo!
O - Nada pra fazer no forum. Como foi seu dia?
E - Igual a todos os outros.
(ENTRA A ARIZ QUE FAZIA AUGUSTA, COM O UNIFORME DE EMPREGADA E BANDEJA DE CAFÉ)
P - Seu café, doutor Olavo.
E - Selma hoje tinha tanto a fazer que até perdeu o trem.
(A empregada serve o café a Olavo, quase uma gueixa)
O - Sabe, eu estive pensando e acho que a gente podia contratar Selma pra dormir também, o que acha? Já não é a primeira vez que ela pega no serviço e perde o trem.
E – Não sei, Olavo. Não quero pesar nosso orçamento. Já disse que eu mesma posso lidar com a casa.
O - Mas ela não te faz companhia de tarde?
E - As tardes são muito sozinhas.
O - Então. E à noite ela te libera do jantar e sobra mais tempo pra gente. O que você acha, Selma?
P - (gueixa) Pra mim está ótimo, doutor Olavo.
O - Então está resolvido. (Augusta pula em seu colo e o beija) Que alegria é essa?
E - Você é o melhor marido do mundo!
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UNIVERSO: A FRONTEIRA FINAL
De Ivan Fernandes
Vinheta de Jornada nas Estrelas. Luz sobre Capitão Kirk, de uniforme da Enterprise, e Stephen Hawkings, em cadeira de rodas.
K - Enterprise, diário de bordo do ano estelar de 2010. O universo. A fronteira final. Uma nova descoberta científica reuniu mais uma vez nossa lendária equipe para uma última missão. Quer dizer, da lendária equipe não sobrou ninguém, porque todos se aposentaram ou morreram. Mas eu, o capitão Kirk, continuo no comando. E como estamos operando em baixo orçamento, enxugamos o cast. Estreando na nave, como meu encarregado, está ninguém menos do que o único cientista capaz de entender nossa missão. Repassando a missão, Stephen.
S - Se b2 – 4ac = e – mc/a2, sendo x uma constante cosmológica variável menor ou igual a zero, então poderemos acelerar feixes de prótons de hidrogênio à velocidade da luz, até que entrem em colisão.
K – Saudade do Spock. Ele era um mala, mas pelo menos a gente entendia o que ele falava.
S - Aquele orelhudo de meia tigela só servia pra combater monstros fantasiados e posar pra fotografias. Nossa missão é científica. Com meu superacelerador de partículas, nós vamos desvendar as origens do universo.
K - Sim, mas pense na nossa audiência, Stephen. Nós iremos audaciosamente até onde nenhum homem jamais esteve? Vai ter ação, emoção, aventura?
S - Muito mais do que isso. Com meu superacelerador, eu posso recriar a origem do universo e jogar por terra todas as religiões. E finalmente provar que não há nada que não seja explicado pela ciência.
K - Mas uns tirinhos pelo menos eu posso dar?
S - Quem precisa disso? Eu estou falando do big bang, capitão Kirk.
K - Bang bang? Não, meu caro Stephen, você pegou o seriado errado. Nós aqui temos nosso arsenal megatecnológico de armas laser, armas neutrôns, armas automáticas, armas de inteligência artificial, armas da guerra no iraque...
S - Mas nenhuma delas pode com meu superacelerador de partículas. Recriando o big bang, eu provarei que o universo é apenas um conjunto de gases e vapores que explodiu. Causas científicas operando sozinhas. Nada de deuses, nada de planos, simplesmente a física: bang! E quando a poeira do último deus for varrida pra baixo do tapete, nós, os cientistas, finalmente poderemos dominar o mundo.
K - Mas se a missão é dominar o mundo, por que viemos para o espaço?
S - Não podemos testar o acelerador na terra, você sabe o que pode acontecer quando micropartículas de neutrôns entram em colisão à velocidade da luz.
K - Sei?
S - Bom, se o superacelerador funcionar, vai acontecer tudo isso que eu falei. Mas se algo der errado, ele criará um buraco negro que envolverá tudo à sua volta para sempre.
K - Que animador saber disso.
(alarme)
K - Essa não! Entramos em colapso gravitacional! Estamos sendo puxados por um campo gravitacional mais forte!
S - Que estranho! O radar indica uma supergravidade vinda de algum lugar para além das 11 dimensões conhecidas. Seja o que for, está querendo se comunicar.
K - Acione o computador de bordo e deixe nosso orkut à disposição.
S - Veja, o teletransportador!
(Krishna e Iemanjá, vestidos à caráter, entram pelo teletransportador)
K - Alto lá!
I - Nós representamos o Sindicato dos Deuses.
KR- Vida longa e prosperidade.
S - Quem são vocês?
KR - Eu sou Krishna, o deus dos hindus.
I - Eu sou Iemanjá, a deusa do mar.
VOZ - (em off à la cid moreira) – E eu sou o deus dos Hebreus.
I - Ele pediu um cachê muito alto, então usamos só a voz.
KR - Além do mais, ele exigiu ser interpretado pelo Marlon Brando.
KR - É, ele não gostou dos atores disponíveis.
VOZ – Eu falei com Marlon pessoalmente e ele já tinha topado.
I - O problema é que o Marlon Brando cobrou um cachê ainda mais alto do que o dele.
KR - Então nós só conseguimos a dublagem do Cid Moreira.
S - Mas o que vocês querem aqui, afinal?
KR - Queremos provar que existimos, ora essa. Nós criamos o universo e tudo que nele se encontra.
I - Essa campanha difamatória está acabando com a gente.
S - Campanha difamatória? Ora esta, senhores, estamos falando de teoria quântica!
KR - E nós estamos falando da audiência! Toda série precisa de vilões! Nós somos os vilões perfeitos pra vocês, e vocês são os vilões perfeitos pra gente. Pra que mexer em time que está ganhando?
K - Nisso eu concordo com eles.
S - Mas Kirk, nós temos à razão ao nosso lado.
KR - E nós temos os templos, a maioria dos governantes e milênios de propaganda bem feita.
VOZ - E mais as sete pragas do Egito e o apocalipse.
I - Desculpem, ele vive convocando as pragas do Egito.
VOZ - Precisamos de ação. Este seriado está muito parado. Vejam a bíblia: não se passam duas folhas sem que haja uma cidade destruída, um dilúvio, um massacre de criancinhas, uma crucificação. É por isso que é fantástico! E faz o maior sucesso!
K - Nisso eu também concordo.
S - Mas Kirk, nossa missão é libertar o mundo do atraso da religião. E meu superacelerador de partículas vai acabar pra sempre com esse ópio do povo!
KR - Por que vocês não fazem como os reis, os faraós e os comunistas? Eles passaram pro nosso lado e passaram a ser cultuados como qualquer um do nosso sindicato.
I - Representamos milhões de associados de todos os povos, com os mais diversos pontos de vista. Deuses da fertilidade, da castidade, da guerra, da paz, deuses humanos, deuses animais e até deuses astronautas. Pensem bem.
S - Já pensei. Basta ligar o superacelerador na tomada. Será um pequeno movimento para mim, mas um grande salto para a humanidade. Kirk, me passe o adaptador.
K - Adaptador?
S - A tomada do superacelerador é avançada demais para ser compatível com a tomada comum 110/220. É preciso um conversor de raios gama.
K - Ah, é?
S - Vai me dizer que uma nave como essa não tem um conversor?
K - Ter não tem, mas aqui a gente dá jeito pra tudo. Vamos fazer um gato aqui... (puxa o fio do superacelerador)
S - Cuidado, Kirk...
K - não se preocupe... eu ligo aqui no gato da tv a cabo... e pronto! (liga dois fios que explodem) Faltou um durex.
KR - Parece que acabou nossa missão por aqui. Vamos embora, amigos.
I - Essa é a nossa vantagem: não precisamos de durex. Adeus.
VOZ – Nem precisei dos gafanhotos.
S - Não cantem vitória por muito tempo! I’ll be back!
(saem os deuses)
S - Anos e anos de trabalho jogados fora.
K - E agora, o que faremos, Stephen?
S - Levantar a cabeça, Kirk. Não nos render até que a luz da razão queime vivo o último dos deuses. Recolha esses pedaços pra mim, por favor. Um pouquinho de superbonder fará milagre.
K – Está em falta. Precisei colar uma fuselagem da Enterprise que estava soltando.
S – Não me darei por vencido. Meu cérebro científico vai encontrar uma solução. Amanhã será um novo dia.
K - E o que faremos amanhã, Stephen?
S - A mesma coisa que fazemos todos os dias, Kirk. Tentar dominar o mundo.
FIM
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FUMÓDROMO
De Ivan Fernandes
Uma varanda de uma festa de casamento. Dali nos chegam ecos da festa, mas é um lugar reservado onde o pessoal escapa pra fumar seu cigarrinho.
Estão em cena Lili e Guida. A primeira vestida de noiva. Passam o cigarro uma pra outra. Lili puxa seu vestido, tentando alargá-lo.
L - Detesto esses vestidos. Impossível de usar na vida real.
G – E esse salto que tá me matando? Se eu pudesse vinha de havaianas.
L - Você acha que o bufê dá conta? E o dj? Tenho medo que a gente tenha escolhido barato demais.
G - Tô imaginando a cara da mamãe se eu viesse de havaianas.
L - Será que papai e mamãe deram falta da gente?
G - Você é a noiva. Você tem direito de dar seus sumiços.
Um garçom entra. Segura uma bandeja com drinks; pousa a bandeja em algum lugar, pega um drink e vira de uma só vez. Respira, tira do bolso um pacote de pó, bate uma carreira sobre um espelhinho, enrola uma nota e cheira. Com o pequeno espelho verifica traços de pó no nariz. Pega de novo a bandeja. Sai. Em nenhum momento liga para as duas.
L - Você viu o que ele fez?
G – Mas ele viu a gente também.
L - A gente tem que fazer alguma coisa. Ele pode causar um acidente lá dentro.
G – Relaxa. Você é a noiva.
L - (suspira) Eu sabia que tava barato demais.
(entra Toni)
T - Ah, vocês tão aí, hein? Sobrou alguma ponta? (corre pra filar o cigarro) Teu pai tá enchendo o saco do dj pra tocar Frank Sinatra. O dj não tem Frank. Preconceito, né? Eu ia gostar de dançar contigo ao som do velho Frank, amor. (puxa Lili pra dançar, e cantarola) Night and day... you are the one... only you beneath the moon and under the sun... (beijam-se)
G - (incomodada) Ei! Olha eu aqui!
L - Amor, você não sabe o que o garçom acabou de fazer na nossa frente. Não foi, Guida?
T – Relaxa, você é a noiva.
L – Pára de mandar eu relaxar! Que ódio, todo mundo mandando eu relaxar. Justamente porque eu sou a noiva é que eu não posso relaxar. Se alguma coisa der errado vão lembrar disso pra sempre. Vocês acham que eu vou deixar um garçonzinho pôr o meu casamento perfeito em risco? No cú.com.br! Eu vou atrás dele é agora! E esse dj vai ter que tirar um Frank Sinatra do baú! Onde já se viu casamento sem Frank Sinatra?(sai)
T - Eu não queria que ela se estressasse.
G - Eu se fosse você se preocupava comigo. Não tô passando nada bem. (pausa) Enjôo, essas coisas. (pausa) Tenho vomitado.
T – Ei, peraí, você não tá dizendo que eu...
G - Seria muito azar.
T - Eu usei camisinha todas as vezes.
G - Menos uma. Lembra?
(volta o garçom. Uma bandeja com vários copos de chopp quase vazios. Ele junta todos em um só copo cheio e quente. Bebe tudo de uma vez. Depois bate mais uma carreira, confere o nariz no espelhinho e sai.)
T - Você viu o que esse cara fez? Ele pode causar um acidente.
G - Eu é que vou causar um acidente! A gente tem que resolver essa história.
T - Peraí! Mas você tem certeza do que tá falando?
G - Não. Mas vou ter daqui a 5 minutos. Eu tenho um exame de farmácia na minha bolsa. Quis fazer antes do casamento, mas não tive coragem. Antes tarde do que nunca. Você me espera aqui pra gente ver o que vai fazer. (sai)
(entra Lili.)
L - Mas que cara de pau.
T - Lili, olha, eu posso explicar, eu...
L - Você acredita que Tio Augusto já tá de porre? Queria subir na mesa pra tirar a roupa. Pior que toda vez ele faz isso. Foi assim até no enterro da vovó. Ai, amor, você tem razão, preciso relaxar. Sobrou uma ponta?
T - É melhor apertar outro. Vai por mim. Um bem grande.
L - Que foi? Você tá com cara de quem viu um fantasma.
T - É que eu tô doido pra deixar essa festa pra trás. Já não tá na hora da nossa lua de mel?
L - De jeito nenhum. Ainda nem tiramos a foto oficial. Acha que eu gosto de ficar pra cima e pra baixo com esse vestido? (maliciosa) O que não impede da gente fazer uma prévia. Um trailler. Eu sempre fantasiei uma rapidinha na minha festa de casamento.
T – Aqui não. Toda hora passa alguém.
L - Você senta, assim. E eu por cima de você, assim. O vestido cobre tudo, sacou? A gente pode fazer o que quiser. Abre a calça.
T - Não é uma boa idéia.
L - Não é isso que eu tô sentindo aí embaixo, não.
T - E você aí embaixo não se manifesta, que você só me mete em enrascada.
L - (parando) Como assim, enrascada?
T - Oi?
L - (sai de cima dele) Por que só se mete em enrascada? Em que enrascada você se meteu? Quer dizer, em que enrascada você meteu ele?
T – Ahn.. eu... nada não... eu...
(entra o garçom. Na sua bandeja tem uma garrafa de whisky e alguns copos. Ele serve um copo sem gelo com whisky até a borda. Abre um saquinho de pó, despeja no whisky, mexe com o dedo, lambe o dedo e bebe de um só gole. Sai)
L – É ele! Tá esperando o quê? Vai atrás!
T - Eu?
L - Você é homem! Se eu for, posso levar uma garrafada na cara. Vai logo antes que ele suma de novo!
T - Graças a Deus!
(Toni sai. Volta Guida, de olhos vermelhos)
L - Que olho é esse, Guida? Pinga um colírio, mamãe vai desconfiar.
G – Já reparou que está tocando Frank Sinatra?
(ouvimos bem ao fundo algum clássico de Frank Sinatra. Guida acende outro cigarro e passa à irmã. Ficam um tempo fumando e ouvindo)
L - Agora papai vai ter que dar o braço a torcer que foi um dinheiro bem gasto.
G - Foi um belo casamento, Lili. Eu tava muito feliz por você.
L - Você tava chorando?
G – Eu não quero acabar com a sua festa.
L – Do que você tá falando?
G - Eu tô grávida.
L - E tá fumando?? (tira o cigarro dela e apaga)
G - Mas o que eu queria mesmo era sumir. (Lili abraça Guida)
L - O que você vai fazer? Vai ter?
G - Não posso.
L – Por quê? Quem é o pai?
G - O pai tá casando hoje. (pausa. De repente, Lili começa a estapear Guida, que se defende)
L - Você sempre quis o que é meu! Sempre!
G - Ah, é? E o Marquinho, hein?
L - Do que você tá falando? A gente era criança!
G - E você nunca me pediu desculpa!
(brigam. Caem no chão, puxando os cabelos uma da outra. Entra Toni. Os três ficam paralisados por um momento)
T – Amor... estão chamando a gente pra foto oficial.
(pausa. Lili se levanta do chão)
L - Então vocês dois. Nos meus olhos. Mas fiquem sabendo que nada, nem ninguém, vai estragar minha festa nessa noite. Vamos tirar a foto. Guida, endireita o cabelo. E o senhor. Ponha um sorriso na cara. Depois da foto, nós vamos conversar. Os três.
T – É... será que dá pra fumar um antes?
(os três se olham e concordam com o olhar. Lili acende de novo o cigarro. Os três fumam, lado a lado, desolados, como em uma anti-fotografia de casamento. Ao fundo, entra o garçom, com uma garrafa de champanhe. Estoura a rolha, e derrama a champanhe nele mesmo, como um campeão de fórmula 1. Bebe champanhe no gargalo enquanto luz desce sobre a cena.)
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FILM NOIR
De Ivan Fernandes
Luz em Sam
S - Marina. O nome remete a mar. Não, remete é foda. Remete é horrível. Marina. O nome lembra mar. Mas ela ainda não era o mar, antes era o rio que lá desemborcava, e passava por mim. Ela era a promessa de que havia mar. Ela era como uma queda d’água. Não, nenhuma mulher quer ser chamada de queda d’água. E essa palavra desemborcava, também, de onde eu tirei isso? Que horror. De novo. Marina. Ela era o rio que corria pro meu mar. Ela era uma cachoeira. Era um pequeno ponto de água pura no imenso deserto da minha vida. Mas foi de um pequeno ponto de água que começou a vida nesse planeta. Não, tá parecendo o Discovery Channel. Marina. Não era assim que eu queria começar. Não é uma história de amor. Mas foi por causa dela que tudo aconteceu.
Luz sobre Marina. Sam entra em sua luz.
M - Posso ajudar, senhor?
S - É, claro... eu... preciso de um terno. Um terno novo.
M - Que coincidência. É justamente o que vendemos aqui. Mas isso você estudou bastante pra saber, não é?
S - Como assim?
M - É que faz uns dias que eu te vejo parado ali na frente. Tomando coragem?
S - Ah, não... eu só estava... é... me decidindo a comprar, é isso.
M - Qual o evento?
E - Evento?
M - Pra qual evento precisa do terno? Casamento, homenagem, velório, trabalho...
E - Ah, sim... é... um... evento.
M - (sorri) Vai ser crediário? Preciso da sua ficha. Trabalha em quê?
S - Eu... escrevo.
M - Uau. Livros?
S - Filmes. Roteiros de filmes.
M - Duplo uau. Será que vi algum?
S - Tomara que não. Só escrevo filme de ação, só tiro e morte pra tudo quanto é lado.
M - Se não gosta, por que escreve?
S - Só compram isso. Uma vez escrevi um diferente e tá lá na gaveta até hoje. E a gente é obrigado a se superar, a mostrar tudo cada vez mais realista, o sangue mais vermelho, a morte como ela é.
M - E... poemas?
S - Só escrevi um. (pausa)
M - Foi você que mandou o poema, não foi? Você sabe, a coisa da cachoeira, do mar. Alguém deixou aqui pra mim.
S - Marina. O único poema que eu escrevi. (pausa. Eles ficam se olhando. De repente ela levanta)
M - Quer me acompanhar? (vai andando e mostrando ternos pendurados, e ele atrás) Temos ternos de diversos modelos. Eu não sei se você sabe, mas o modo como o homem usa um terno mostra quem ele é. Você deseja um acessório pra acompanhar? Um cinto? Gravata? Sapato? O modo como o homem usa os acessórios também diz muito sobre ele. Conta muito. Eu posso arranjar o terno certo pra você. Se souber que tipo de homem você é. (vira-se finalmente para ele) Então, que tipo de homem você é? (estão próximos. Seus olhos se encontram. Uma pausa. Ele a puxa e beija) Pra quem é bom com as palavras, você fala muito pouco.
S - Quem disse que eu sou bom?
M - Vai me dizer pra que é o terno?
S - Pra te convidar pra jantar. Era pra isso que eu tava tomando coragem.
M – (pega um terno) Este parece bom. O provador é ali. Saio às 9.
Ela sai. Sozinho, ele quebra a pose e vibra como quem fez um gol. Entra no provador.
Dentro do provador está Gilson, sentado com bombas de dinamite espalhadas por todo o corpo. Um se assusta com o outro.
G - Sou um suicida com bombas.
S - Deu pra notar.
G - Eu vou me matar e explodir tudo por aqui.
S - Quando deus me dá um presente, sempre manda a conta em seguida...
G - Vai embora daqui, você não tem nada com isso. Meu negócio é com ela.
S - Marina?
G - Ela é minha mulher. Sabia? De papel passado. Aposto que ela não te disse isso, né? Nós ainda somos casados.
S – Sei. Desculpa perguntar, mas... parece que sua bomba não tem detonador. Eu entendo um pouquinho disso.
G - Está aqui nesta caneta. Eu mesmo construí. Tem eletrodos na mola da caneta que acionam a bomba. Aprendi naquele filme, Explosão Fatal.
S - Putz. Não funciona. É invenção.
G - Como é que você sabe?
S - Fui eu que escrevi esse filme.
G - Você tá blefando.
S - Não tô não. Fui eu que escrevi mesmo.
G - Tô falando sobre a bomba não funcionar. Você tá blefando. O jornal disse que o filme ensinava a fazer bombas.
S - O filme é só uma fantasia. Eu não tenho culpa se algum retardado resolve repetir na vida real.
G - Então você não vai se incomodar se eu apertar esse botãozinho...
S - Não! Não! Tá bom, você venceu. É melhor ninguém se mexer. Não se mexe daí, que eu não me mexo daqui.
(entra Marina)
M - E aí, ficou bom? Eu não costumo me enganar e... (vê o homem-bomba. silêncio) O que você tá fazendo aqui, Gilson?
G – Você sabe. Nem vem. Eu avisei. Se eu apertar o botão da caneta, tudo explode.
M - Eu não acredito que você tava falando sério.
G - Chegou a hora do nosso acerto de contas. Se você tentar sair, eu aperto o botão. A gente ainda tem chance.
M - A gente já conversou sobre isso, Gilson.
G - Se não pode ser minha, não vai ser de ninguém.
S - Desculpa, não tenho nada com isso, mas você também não vai ser de mais ninguém, se fizer isso.
G - Não me interessa. Eu já estou morto. E eu comecei a morrer no dia que conheci você, Marina. Quem conhece Marina acaba como eu. Marina não é uma cachoeira, meu amigo. É um escorpião do deserto. Você pensa que ela é igual à mocinha do seu filme?
S – A vida não é filme, amigo.
M - Eu é que comecei a morrer quando te conheci. E prefiro explodir a voltar pra você.
G – Eu nunca vou assinar esse divórcio.
M - Agora eu tenho alguém pra me defender.
G - Quem? Ele?
S - Eu?
G – Ele é o seu novo herói? Isso não é cinema, Marina. Só eu morreria por você. Quer ver? (para Sam) Tá preparado? Tem coragem de ir até o fim?
S – Peraí, cara. Vamos fazer a coisa direito. Como manda o figurino. Vamos chamar tv, polícia, negociadores. Você não quer viver um filme?
G – No seu filme o cara salvava a mocinha no fim. Quero ver agora. Isso é o amor da vida real, meu irmão. Vou te dar 10 segundos pra decidir se quer sair ou explodir junto com ela.
S – Maldita hora que eu fui pensar naquele filme de bomba realista.
G - 10, 9, 8... (Sam e Marina se olham. O olhar dela deposita alguma esperança nele) ... 7, 6, 5 ... (Sam abaixa o olhar) 4, 3... (Sam sai correndo da cena)
Trevas.
Voz em off – E atenção: uma explosão parou o centro da cidade na tarde de hoje. Um homem se matou com uma bomba, na loja onde trabalhava sua ex-mulher. Ela também morreu na explosão. A bomba usada pelo homem era de construção caseira, idêntica à que aparece no filme “Explosão Fatal”, em cartaz nos nossos cinemas com censura para 14 anos. As filas para a entrada do filme quase triplicaram. Nenhum dos responsáveis pela produção foi encontrado para dar uma declaração. Mais detalhes você encontra no noticiário noturno.
Luz em Sam, ele segura um buquê de flores.
S - Marina. Ela não era uma cachoeira, nem um escorpião do deserto. Ela era uma flor que nasceu no lodo. Ela era a mocinha do filme. Mas no lodo não existem heróis. Marina. Não era assim que eu queria terminar. Eu não sou herói. Eu só escrevo sobre eles. Marina. Esse é o único poema de amor que eu escrevi. Quando é tarde demais e já não adianta nada. (Deposita as flores em uma lápide.)
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RIO DE INDIGNAÇÃO
Protesto contra emenda Ibsen une estado e 150 mil marcham na maior passeata desde o “Fora Collor”
ECONOMIA – O GLOBO – quinta-feira, 18 de março de 2010
Ivan Fernandes
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GRITOS NA MULTIDÃO
De Ivan Fernandes
Nota: um cena de passeata pressupõe que haja uma multidão. Os 3 personagens da cena interagem com diversos outros, que podem ser deixados “invisíveis”, ou preenchidos com figuração, de acordo com a direção.
Música do Pink Floyd: We don’t need no education...
Entram 1 (Jabson), 2 (Banha), e 3(Wescley), marchando, com camisas de colégio público e caras pintadas.
1 - Por que a gente tá nessa merda de passeata? A gente não se enquadra em nada.
2 - Pra mim, sair da escola já tá bom.
3 - Tô pouco me fodendo pressa passeata. Cadê a vodca?
2 - Tá com muita coca-cola.
1 – Cadê o show? Cadê os artistas?
3 – Vasco!
2 – Olha o nível, Wescley!
3 – (quebra a garrafa) Hoje eu não quero saber de nível. Hoje é o nosso dia.
2 – Pra quê essa revolta?
1 (outro assunto) – Tá cheio de escola particular aqui.
3 – Quem tá revoltado? Eu tô me divertindo!
2 – Agora não tem nada pra beber.
3 – Gostosa! Passou direto. Vagabunda!
1 – Não adianta. As garotas vão preferir quem estuda na particular. Quem tem bala na agulha.
2 – Sempre sobra alguma.
1 – Eu não quero sobra.
3 – Devia querer. Tu não pega ninguém mesmo.
1 – Claro. Olha pra essa camisa.
3 – Blusa de colégio público não tá com nada.
1 – Ontem eu pedi ao meu pai pra me colocar numa escola particular.
2 – E teu pai?
1 – Me deu um murro na cara. Eu também sempre escolho a hora errada pra falar.
3 – Teu pai é um babaca.
1 – Vai tomar no cú.
2 – Alguém se ligou onde tá nossa turma? Nosso ônibus?
3 - Foda-se a turma! Foda-se o ônibus! Vocês não tão entendendo nada do que isso significa! A gente estuda a semana inteira. Agora a gente tá livre, porra! Pode fazer o que quiser! Agitar! De que adianta sair da escola se você continua pensando nela?
2 – A única coisa que eu tenho agitado é aquela cachaça que a gente bate no joelho, como é que é o nome?
1 – Já sei: vamo tomar uma camisa de um mané desses de escola particular?
3 – Ah, qualé, Jabson, isso aí é barato na loja. Se é pra fazer merda, vamos logo meter um i-pod.
1 - Só de onda. Vamo pegar um uniforme. Tu vai ver como tudo muda. E a gente faz o mané vestir a nossa camisa.
3 – Então tu fica com a camisa que eu fico com o i-pod.
2 – Caralho, se vocês dois são os melhores amigos que eu consegui arrumar, que merda de vida deve ser a minha.
1 – E se a sua vida pudesse ser o que você quisesse, agora, o que é que você ia querer?
3 – Eu acho que eu ia querer ser uma árvore. Fazer fotossíntese!
2 – Galera, ó o cara da cerveja passando.
1 - Sério, porra!
3 – Surfista. Eu ia querer ser surfista.
2 – Eu nunca beijei uma garota, pronto. Queria começar hoje.
1 – Pois eu ia esfregar minha camisa na cara de todo mundo. A camisa daquele playboy ali! Ô playboy!
3 – O playboy te ignorou! Não te deu a menor moral! Nem pro crime você serve! (dá um “pescotapa” na nuca de 1)
2 – Vocês tão mais pra band-aid que pra bandido.
1 – (para 3) Meu pescoço não é peru pra tu ficar metendo a mão.
3 – Qualé, só teu pai que pode te bater? (dá outro pescotapa)
1 – Limpa a boca pra falar do meu pai, filho da puta.
3 – Tu apanha dele, apanha de mim e vai apanhar do playboy também.
1 – Sacanear a vida dos outros é fácil, Wescley. E tu? Tem disposição? Duvido! Então olha só como se faz: ô playboy! Eu tô falando contigo! Passa essa camisa pra cá!
3 – Tô dizendo? Tu é invisível! (dá outro pescotapa)
(o 1 aponta um revólver pra 3, que cai no chão com o susto. 1 aponta para o playboy)
1 – E agora, tá me vendo? Tá me ouvindo? Vai passar a blusa ou não vai?
3 – Agora pegou pesado, Jabson.
2 – Porra, tá cheio de polícia aqui. Até o governador tá aqui.
1 – Agora ficaram com medinho? Eu também tenho bala na agulha! (canta) Governador! Cadê você? Eu vim aqui só pra te ver! Não corre não playboy, se não te sento o dedo!
2 – A gente não devia ter dado nada pra ele.
1 – Eu não tô doido, seu cuzão. Eu quero é resolver minha vida. E você, gatinha? Fica babando ovo desse playboy? Só pra ficar na aba! Aposto que tu nem sabe reconhecer um cara legal. Tu vai dar um beijo ali no meu amigo Banha! Agora!
2 – Não precisa não.
3 – Essa passeata não termina nunca.
1 – Qualé, Banha, tá recusando? Vai passar pro outro lado? Fica sabendo que eu não sou muito pro liberal, não. Te colo aqui mesmo, bichona.
(ruído de helicóptero. 2 e 3 se ajoelham e olham pra cima como se estivessem se rendendo)
2 – Perdemo, Jabson, pára com essa merda!
1 – Enfia a camisa no cú, playboy! Agora eu vou pedir direto pro governador. (para o alto) Aí governador! Minha exigência é a seguinte: o meu pai foi despedido, entendeu? Despedido. Eu quero que o meu pai tenha o mesmo emprego que o pai dele!
2 – Tá pensando que tá num filme? Tem um monte de cano apontado pra gente!
3 – Deixa o teu pai pra lá, porra! Quando foi que ele deu uma dentro?
1 – (atira na perna de 3) Cala a boca, porra! Eu também quero ser playboy!
Eu quero que a minha escola tenha tudo que tem na dele. Eu quero que a minha casa tenha tudo que tem na dele! Eu quero andar no mesmo carro que ele. Até que todo mundo olhe pra mim e só veja ele!
3 – O filho da puta abriu minha perna!
1 - Tá ouvindo, governador? O próximo pode ser você!
2 – Não tem governador nenhum, Jabson. O cara tá lá no palanque. Não tá vendo? O show ia começar, porra!
1 – Ia por que? O show vai começar agora! Olha lá, Banha! Aquilo ali não é a televisão? Apontando pra gente? Governador! Promessa é dívida!
2 – Ninguém te prometeu nada.
1 – Então eu posso cobrar de qualquer um! (atira a esmo pela platéia. Rajadas de metralhadora o atingem, ele cai. Banha corre até ele) Olha, Banha. Tá vendo esse buraco vermelho no meu peito? É igual o escudo daquela escola particular. (sirenes) Viu? Não falei? O show tá começando agora! É o nosso dia, Banha.
(Sirenes aumentam)
FIM
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MERGULHO NO ESCURO
Histórias de pessoas que sofrem de insônia, problema que segundo pesquisa atinge um em cada três brasileiros.
O GLOBO – REVISTA O GLOBO – 11 DE ABRIL DE 2010
INSÔNIA
De Ivan Fernandes
Um telefone no meio da noite.
PRISCILA – Diz que não é você, Fernanda.
FERNANDA – Sou eu. E agora? O que eu faço?
P – Tenta dormir. Procura um seriado velho na tv. Abre um livro. Conta carneirinho. Qualquer coisa menos me ligar a essa hora pra conversar.
F – Mas é o Zé Guilherme. Ele fica me ligando a noite inteira. Diz que eu sou o amor da vida dele.
P - O amor da nossa vida é assim mesmo.
F – Que amor, Priscila? Ele é casado e tem filhos! O cara tem pra onde voltar toda noite e quer ficar controlando as minhas?
P - Quem mandou dar pro professor da faculdade? Ainda mais coroa.
F – Justamente por isso. Não sabia que ele ia pirar, pensei que já devia ter comido outras. E agora o Claudio tá puto comigo, porque...
P - Olha só, amiga, sabe que eu te amo, mas eu tenho que cuidar dos meus problemas agora.
F - Que problemas? Vai me dizer que passou a não dormir também?
P – Dormir? Quem me dera. Tô decorando o último capítulo.
F – Ah, é! É amanhã! Vão gravar em cima da hora, né? Por causa do mistério. Conta pra mim! Quem matou Renato Albuquerque?
P - Você sabe que eu não posso falar. Só amanhã no último capítulo.
F - Ih, peraí, segura que eu tenho outra chamada. E não é o Zé Guilherme!
CLAUDIO – Fernanda, essa coisa com o Zé Guilherme tá completamente fora de controle. Ele tá em depressão. Não consegue mais dar aula. Pra quem é que sobra? Pro monitor. Ele tá descontando tudo em mim! Tenho que preparar aula pra amanhã cedo. E cadê o sono? Olha aí, falou no diabo. Segura que ele tá na linha. Oi, Zé!
ZÉ – Conseguiu falar com a Fernanda?
C – Não, Zé. Acho que ela deve ter desconectado, nem o msn dela responde...
Z - Eu preciso que você faça ela falar comigo.
C - É uma situação difícil pra mim, Zé...
Z – Vocês já namoraram.
C – Não foi bem um namoro...
Z - Claudio, você é a única pessoa com quem eu posso conversar. Que pode me explicar a cabeça da Fernanda. Foi ela que me procurou, Claudio. Tomou a iniciativa. E agora some. Ela fez isso com você também?
C – Você não acha que tá exagerando? Afinal, e a sua mulher... seus filhos...
Z – Mas eu disse à Fernanda que ia sair de casa! Eu disse logo na primeira noite. O que mais ela quer?
C – O que menos ela quer. Menos, Zé. Não é à toa que a menina se mandou.
Z – Diz a ela que eu cumpri o que prometi. Saí de casa. Tô dormindo num hotel. Dormindo é modo de dizer. Faz duas noites que não durmo porra nenhuma. Fico ouvindo o rádio e cantando junto. Todas as músicas falam dela. Olha essa: (canta) Eu quis te dar um grande amor / mas você não se acostumou...
C – Olha, Zé, não me leva a mal, mas eu tenho que preparar aula. A sua aula! Tá me ouvindo, Zé? Zé! (Zé continua cantando sem ouvir, Claudio desliga.)
C – Fernanda? Ainda tá aí? Cara, não aguento mais esse cara chorando no meu ouvido. Fala com ele, vai. Fernanda? Desligou?
(O telefone de Claudio toca de novo)
BIA – Claudio, olha na minha gaveta aí e vê se tem cigarro. Tô indo pra casa e preciso saber antes de subir. E café também. Vê se tem café.
C – Acabou o nescau.
B – Onde é que eu vou achar nescau a essa hora, criatura?
C - Bia, sério, tô ficando preocupado. Você passa o dia inteiro nessa loja, não come, não dorme...
B - Eu tô comendo! Ouve! (mastiga)
C - Não vai me dizer que isso é podrão.
B - Você queria o quê? Cerejas com champagne? Nem paguei a minha parte do aluguel ainda! Essa semana tô fodida, não bati cota na loja. Se eu não vender 3 mil até domingo, tô na rua. Comer é dispensável. Agora dormir é mais difícil. Se eu conseguisse pregar o olho por 15 minutos. Por isso que eu preciso saber se tem cigarro e café.
C – Mas eu fiz jantar pra você. Não precisa comer podrão. Peraí, tô com outra chamada. Depois falo contigo. (desliga)
B – Tem café? Tem cigarro? Porra!
C – Maíra! Foi mal, vi seu número na bina. Eu tava sem crédito.
MAÍRA – Tô tomando uma cerveja aqui no baixo. Vem pra cá.
C – Pô gata, eu tenho que preparar uma aula pra amanhã.
M – E daí? Vai dormir cedo? A noite só tá começando.
C – Eu até queria mas... infelizmente...
M – Pode parar. Eu já entendi. Você tá estranho desde que a gente se beijou. E agora tá me evitando. Fica tranquilo, passa por cima. Eu ia adorar te dar uns beijos, passar a noite contigo de novo, mas se você tem alguma paranóia tipo “ela tá grudando, ela quer namorar”, se você não consegue entender o momento pelo momento, então tudo bem, é só fingir que nada aconteceu, tomar uma cerveja, tudo bem pra mim.
C - Nem sei o que responder.
M - Vou te deixar pensando. Qualquer coisa tô por aqui. Até o dia nascer feliz.
(Maíra desliga e liga de novo. Fernanda atende )
F – Alô.
M – Tô tomando uma cerveja no baixo! Vem pra cá! Tô aqui com o Dog.
F – Dog?
M – Aquele meu amigo lutador de jiu-jitsu. Ele te achou maior filé.
F – Mas eu nem conheço o Dog. E o que é que a gente conversa com um lutador?
M – Ele é lutador mas é um cara super cabeça. Você devia dar uma chance.
F – Ele tá aí ouvindo isso?
M – Você vem ou não vem?
F – Mas por que é que chamam ele de Dog?
M – Ih, minha filha, nem te conto.
F - E vocês vão ficar aí muito tempo?
M - Até o dia nascer feliz. Ir pra cama só se for com alguém.
F - Ok. De repente dou um pulo por aí.
M - Valeu. (desligam. Maíra liga novamente) Oi Dog! Tô tomando uma cerveja no baixo. Vem pra cá! Tô sentindo uma conexão. Vem pra cá que tu vai se dar bem. (Desliga) Diversão, é solução sim! Diversão, é solução pra mim!! (Liga de novo. Claudio atende).
C – Oi.
M – E aí, pensou?
C – Tenho que atender outra ligação. Te ligo daqui a pouco. Oi Zé.
Z – É porque ela conhece a cristina, não é? Se eu não fosse casado com a Cristina, tudo seria diferente.
C – Tá bom. Eu vou ligar pra fernanda. Ela vai falar com você. Custe o que custar. (desliga. Liga pra Fernanda) Fernanda, você tem que terminar com ele.
F – Eu já terminei com ele.
C - Termina de novo. Alguns caras tem que ouvir mais de uma vez.
F - Segura aí. Tem outra pessoa ligando pra mim.
PRISCILA – Eu matei Renato Albuquerque!!
F – Você?
P - Acabei de receber um e-mail. O primeiro final vazou. Eu sou o plano B!
F – Quem era o assassino original?
P – O mordomo. Cara, nunca mais eu vou dormir. Esse papel pode marcar pra sempre. Pode decolar a minha carreira logo na primeira participação. Você não pode falar pra ninguém, hein?
F – Imagina. Peraí que o Claudio tá na outra linha.
P – Manda um beijo pra ele.
C – Eu vou me matar.
F - Antes de se matar, promete que guarda um segredo? Promete?
C - Os mortos não contam segredos. E eu vou me matar. O Zé Guilherme nunca vai desgrudar da porra do meu telefone.
F – Foi a Priscilla que matou Renato Albuquerque!
C – Sério?
F – Ela ficou com o papel porque o final original vazou. Sentiu a responsa? Mas não pode falar pra ninguém.
C – Ai! O Zé Guilherme me ligando de novo. Peraí!
Z – Você acha que tem outro homem na jogada?
C – Eu acho que provavelmente ela precisa de mais espaço.
Z – Por que ela precisa de espaço? Ela te disse que precisa de espaço?
C – Zé, segura um segundo, tá bom?
Z – Não!
C – Fernanda!
F – Cara, eu me sinto mal com essa história do Zé. Eu não planejei que acontecesse dessa forma. Mas eu não acho que falar com ele vai adiantar alguma coisa. Ai, meu deus, ele tá me ligando!
C – Atende!
F– Não posso!
C – Atende!
F – Caiu na secretária! Ainda bem.
Z – (fala com a secretária eletrônica) Oi, Fernanda, é Zé. Eu... eu quero fazer uma serenata eletrônica pra você. (canta) Eu quis te dar um grande amor / mas você não se acostumou... peraí, não era essa. Era aquela... como era? (canta) Quando você foi embora / fez-se noite em meu viver. Fraco eu sou... não... forte eu sou... como era? Espera um pouco. (liga. Claudio atende) Como é que a letra de travessia mesmo?
C – Peraí, que eu vou ver na internet e já te ligo. (Claudio desliga, respira. Seu telefone toca de novo)
BIA – Porra, que dificuldade falar contigo no telefone!
C – Não deve ser tão difícl assim. Até você conseguiu, tá vendo?
B – Eu tô a meia hora vagando em busca de uma porra de um bar aberto. Tô sem fumar desde as dez. Então não banca o engraçadinho.
C – Traz umas cervejas.
B – Dá pra me dizer se tem cigarro em casa, porra!
C – Ei! Não desconta em mim, ok?
B – Descontar? Por que é que tudo gira em torno de você? Dá pra prestar atenção em mim?
C – Por que a gente não consegue trocar 3 palavras sem brigar? Fiz até jantar pra você!
B – Foda-se o jantar! Tô falando do cigarro! Presta atenção em mim!
C – Olha só, Bia, eu tenho que preparar uma aula pra amanhã cedo e não tô com tempo nem com disposição pra bater boca pelo telefone. Quando você chegar a gente conversa.
B – Ah, não conversa não. Sabe por que, Claudio? Por que eu vou parar no primeiro bar aberto com cigarro e tomar uma cerveja. Uma não, duas, três. E quando eu chegar, se você ainda tiver preparando sua aula, não vai ter conversa porque eu vou te tacar em você todas as coisas que tiver na frente.
C - Ah, já ia esquecendo. Eu sei quem matou Renato Albuquerque!
B – E daí? O que isso tem a ver? Presta atenção, porra!
C – Peraí, tão me ligando.
FERNANDA – Você contou pra alguém quem matou Renato Albuquerque?
C – Eu não.
F – A história vazou. Partiram pro plano C. A Priscilla tá arrasada. Eu só contei pra você.
C – Bom, mas o outro assassino já tinha vazado e eu não tive nada a ver com isso.
F – Se eu descobrir que foi você que passou a história pra frente, nunca mais falo com você. E conto pra Priscilla. Peraí, tão me ligando.
MAÍRA – E aí, você vem?
F – Mas como é esse Dog?
M – O Dog já era. Quero que você conheça o Jorginho. Quer dizer, o Jorjão.
F – Tudo bem, marquei com a Priscilla aí, também. A coitadinha tá inconsolável. Você não imagina o que aconteceu.
M – Peraí que tão me ligando.
CLAUDIO – Oi.
M – Oi. Mudou de idéia?
C – É que tá uma lua bonita demais pra preparar aula. Vai ficar por aí?
M – Até o dia nascer feliz.
C - Acho que tô precisando disso. Ver nascer um dia feliz.
M - Então, vem pra cá. Peraí que tem uma ligação pra mim. Alô.
ZÉ – Eu liguei esse número por acaso. Eu não tenho com quem conversar. Eu quero fazer uma serenata eletrônica. (canta) Eu não sei o que o meu corpo abriga / nessas noites quentes de verão. Eu tô errando tudo mais é por amor.
M – Vem pro baixo. Aqui a gente erra por amor todas as noites.
Z – Onde é?
M – Todo mundo sabe onde fica. É só chegar. (desliga)
BIA – Telefonista? Informação? Algum bar com cigarro aberto a essa hora? Jura? Só o baixo? Andar até lá... (desliga. Tira o salto, ficando descalça) Todas as noites no baixo...
Z – (continua cantando para o telefone sem ouvintes) E não me importa que mil raios partam / qualquer sentido vago de razão / eu ando tão down...
FIM
________________________
Mulher traída não vai ao resgate no Chile e marido é recebido por amante
SOTERRADOS
De Ivan Fernandes
Escuridão. Miguelito, iluminado apenas pelo chapéu-farol de mineiro.
M - Eu tenho aprendido muito aqui dentro com meus companheiros. Mas eu ainda tenho muita coisa pra mostrar. Tive muito tempo pra pensar nos meus erros. Tempo pra valorizar a vida. Tem coisas que eu fiz e nunca repetiria. Mas todo mundo tem direito a uma segunda chance. Tem pontas soltas lá fora que eu preciso acertar. É por isso que eu peço a sua ligação, o seu voto, das pessoas que me conhecem, que acreditam, pra que eu seja o escolhido pra sair primeiro deste soterramento. Eu sou Miguelito. Essa é minha vida. Esse é meu mundo.
Frido em frente à tv com pipocas
F - Corre, mamãe, vai perder o papai no confessionário! São só 30 segundos!
A (de fora) - Não me venha falar desse canalha! Desliga a tv!
F - Mas mamãe! O primeiro escolhido pra sair ganha o i-pod de última geração, os 100 mil dólares e o cruzeiro pras ilhas gregas!
(Entra a mãe, Dona Alba)
A - E você ainda quer que ele ganhe? Pra quê? Pra gastar tudo com aquela vagabunda?
F - Ih, mãe, nada a ver falar assim da Elvira...
A - Não pronuncie o nome desta mulher nesta casa!
F - Mas ela é tão legal, mãe...
A - Tão legal que seu pai foi viver com ela e nunca mais ligou pra você.
F - ...ontem passou na tv a casa onde ela mora, muito mais legal do que aqui. Lá tem mesinha onde a gente pode pôr o pé.
A - Tira o pé da minha mesinha!!
F - Mostrou também um porta-retrato cheio de fotos dela com o pai, só vendo, mãe, como eles se amam!
A - Frido! Você tá do lado daquela jararaca?
F - Por que você não vai na tv, também? Meus amigos não acreditam que o soterrado é meu pai!
A - Ainda bem! Por que nunca mais eu quero ver na vida esse Miguelito miserável. E você também não vai ver! (desliga a tv)
F - Pô, mãe. (faz sinal para as cortinas) E aí? ficou bom? Deu pra pegar?
A - Ficou maluco? Deu pra falar com as paredes, agora? Isso deve ser pela ausência do seu pai, aquele safado. Eu desligo a tv e você enxerga ele pelos cantos, pobrezinho. Não adianta, Frido, ele foi embora, não está aqui, veja. (abre a cortina. Tem um repórter atrás) Que é isso? socorro! Ladrão!
W - Calma, dona Alba! A senhora não está me reconhecendo por estar em choque, devido ao trauma desta dramática experiência. Eu sou William Wallace, o repórter do “Fama Magazine”. Estou encarregado de fazer a cobertura da crise do soterramento.
A - Crise? Que crise? Eu estou ótima! Eu espero que aquele canalha apodreça soterrado lá embaixo! E você está invadindo minha privacidade sem autorização! O resgate não é aqui!
W - Aí é que a senhora se engana, dona Alba! O “Fama magazine” foi convidado a penetrar nos anais da sua residência pelo seu filho, que no zelo de assegurar ao público o direito da informação sobre os personagens desta tragédia, está participando do nosso programa “A Fama abre as portas”! Dê um tchauzinho pras nossas câmeras espalhadas pela casa!
A – Frido?! Meu próprio filho me apunhalando pelas costas!
F - Pô, mãe, se comporta! A rua toda vai ver a gente na tv!
W - Não se preocupe, garoto. As pesquisas mostram que leva pelo menos 3 blocos do programa para as pessoas começarem a gostar de William Wallace! Mas chegou a hora do nosso recadinho pra quem tá em casa! Cola aqui comigo, Dona Alba! Fecha na gente, Jamanta! Você que tá em casa e foi abandonada, traída, rejeitada, trocada por uma mulher mais jovem, mais bonita, mais gostosa. Você que agüentou o pior do seu marido quando ele era pobre e anônimo e agora tem que assistir pela tv ele te chutando pela outra. Se seu marido te deu cabelos brancos, você só tem uma arma na mão: mude o seu cabelo com Tintron! A tintura da vingança! Fique mais jovem e bonita! Faça como Dona Alba!
A - Ei! Quem disse que eu pinto o cabelo?
W - Dona Alba! O público tem o direito de saber: é verdade que a senhora vai posar pra uma revista masculina?
A - Eu?
F - Aceita mãe!
W - Será a sua grande chance de dar a volta por cima, dona Alba! A chance de provar ao mundo o que seu marido deixou pra trás quando trocou a senhora! Mostrar que a senhora é bem mais gostosa do que a outra!
A - Mas... mas eu... não sou! (chora) Ela é mais jovem, mais bonita. Os peitos dela desrespeitam a lei da gravidade!
W - Ora, dona Alba, pra isso nós temos recursos. A sua edição da revista será patrocinada pela Botox, pela Photoshop e pelos moldes Silicone Dream!
F - Aceita mãe!
W - Espere! Tive uma idéia melhor! Vamos botar a senhora e a amante lado a lado na mesma revista! O público é que vai decidir quem é a mais gostosa!
A – Eu do lado dessa sirigaita?
W – E quem sabe a senhora não arruma um novo namorado também? Aí a gente faz uma matéria sobre o seu novo amor! A vingança é um prato doce, dona Alba.
A – Frio. É um prato frio.
W – Que seja. O que a senhora me diz?
A – Bom... o silicone vai mesmo ficar pra mim?
W – Totalmente grátis! Os moldes Silicone Dream permanecem de pé muitos e muitos anos depois da morte! Nem os vermes derrubam! A senhora apenas terá que usar a nossa logomarca tatuada nos seios.
A – Nesse caso, eu topo sim. Mas só pra mostrar praquela piranha quem é quem.
F – Oba! Finalmente meus amigos da escola vão me respeitar!
W – Fecha em mim, Jamanta. No próximo bloco, nós estamos com o áudio do seu Miguelito ao vivo! Ele vai contar manias que a dona Alba tinha, manias, não pode botar o pé na mesinha, hein, dona Alba?
A – Aquele porco está fazendo fofoca de mim? Pois eu tenho duzentas histórias dele pra contar.
W – Opa! O clima tá quente! Tem assunto pra uma semana de programa aqui!
F – Uma semana?? Mãe, eu te amo!
W – Que frase bonita. Em meio a uma tragédia que abalou o mundo, uma lição de esperança no amor de um filho. Isso você só vê aqui no Fama Magazine. A gente já volta. É um instante só. Não saí daí não. Fecha, Jamanta.
_________________________
PLIM PLIM
De Ivan Fernandes
(batidas de Moliére. Entra Romeu)
R – Mas silêncio! Que luz se escoa agora da janela? Será Julieta o sol daquele oriente? (entra Julieta) Surge, formoso sol, e mata a lua cheia de inveja, que se mostra pálida e doente de tristeza, por ter visto que és mais formosa do que ela.
(ouvimos um plim plim)
R - Pô Julieta, tá o maior sol! Vamos pegar uma praia? (tira a camisa, revelando uma barriga-tanquinho, de plástico ou papelão, colada sobre a barriga do ator)
J - Ih, qual é, Romeu? Tu é do núcleo pobre da novela! Nunca que os meus pais vão deixar a nossa relação acontecer.
R - Mas se a gente der ibope, eu garanto que eles deixam. É só o público torcer pela gente. Afinal, eu sou o galã e você é a...
J - Olha...
R -...Galoa. Mas você tá com muita roupa pro horário, Juju; assim não dá ibope.
J - Você acha? Exagerei?
R - Você não vê a novela da concorrência? Se passa numa praia. O que é que se usa numa praia?
J - Ah, é por isso que passaram nossa cena pra luz do dia? Mas isso não faz sentido. Você não entra aqui escondido pelas trevas da noite? Como é que ninguém te viu, então, com esse baita sol?
R - Não faz pergunta difícil. O importante é que a gente vai à praia. Praia dá ibope.
J - Dá ibope pra você que só precisa tirar a camisa. Mas você acha que alguma mulher acorda com esse cabelo? Calcula a hora que eu tenho que chegar na sala de maquiagem.
(batidas de Moliére)
J – Ai de mim!
R – Oh, falou! Fala de novo, anjo brilhante!
J – Romeu, Romeu! Meu inimigo é apenas o teu nome. Mas o que é um Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob outro nome teria o mesmo perfume.
(plim plim)
R - Pô, mas tu fala muito, garota. Bora se beijar logo.
J - Você acha que eu quero compromisso com pobre? Eu visto de Prada pra cima, meu amor. Sente as jóias. Vai bancar? Acha que eu vou topar ser garçonete? Balconista? Operadora de telemarketing? Olha essa mansão. Consegue ver onde ela termina? Pra eu sair da casa do papai só pra ir pra uma igual.
R - Pô, mas tu é muito exigente. E cadê o amor?
J - Amor é o caralho. Quero vida de princesa.
R - Pô, assim pegou pesado. Ficou forte. Pra esse horário não vai passar esse diálogo não.
J - É fácil. A gente põe um funk. (entra uma base funk. Canta) Amor é o caralho / quero vida de princesa (dançam funk até o chão, etc. depois de um tempo, julieta sinaliza para o fim da música ) Pronto. Agora virou cultura popular.
(batidas de Moliére)
R – Senhora, juro pela santa lua que acairela de prata as belas frondes de todas essas árvores frutíferas...
J – Não jures pela lua, essa inconstante, que seu contorno circular altera todos os meses, pra que não pareça que teu amor, também, é assim mutável.
R – Pelo quê devo jurar?
(Plim plim)
J - Jure pelo novo cartão de crédito do banco Rosemberg! (tira do vestido e mostra) Só ele dá 60 dias pra pagar. Com ele, você pode me dar uma vida de princesa, amor.
R - Puxa, mas será que um cara pobre como eu poderá ter um cartão de crédito do banco Rosemberg?
J - Mas é claro! O cartão de crédito do banco Rosemberg é aberto a todos os tipos de deficientes. Adquira já o seu! (joga o cartão para ele)
(batidas de Moliére)
VOZ DAS COXIAS – Julieta!
J – Romeu querido, só mais 3 palavrinhas, e boa noite. Se esse amoroso pendor for honesto, amanhã cedo me envie uma palavra pela pessoa que eu te mandar, dizendo quando e onde pretende realizar o casamento, que a teus pés depositarei minha ventura, para seguir-te pelo mundo todo como senhor e esposo.
(Plim plim)
R - Mas casamento é só no último capítulo!
J - Não, idiota. No último capítulo a gente morre.
R - O quê??
J – Você não leu o script não?
R – Mas eles não podem nos matar! Nós somos o casal de maior apelo! Quero falar com meu agente agora! (pega um celular e liga) Alô, Pontes! Que história é essa? (ouve) Ah... (ouve) Ah... (ouve) Então tá. (desliga. para Julieta) Viu? Nós vamos gravar um final alternativo passando a lua de mel em São Lourenço.
J – São Lourenço?! Que coisa mais ultrapassada! Eu quero Miami.
R – Miami não cabe no meu bolso, nem. E as pesquisas mostram que o público quer ver você no núcleo pobre.
J – Ah, não. Dançar funk foi a minha última concessão.
(batidas de Moliére)
VOZ NAS COXIAS – Julieta!
J – A que horas devo mandar alguém para falar-te?
R – Às nove horas.
J – Sem falta. Só parece que até lá são vinte anos. Esqueci-me do que tinha a dizer.
R – Deixe que eu fique parado aqui, até que te recordes.
J – Então eu continuaria esquecendo, só pra que ficasses aí parado, me lembrando de como adoro tua companhia.
R – E eu ficaria, pra que esquecesses sempre...
(plim plim)
J – Eles ficam esticando muito a história, dá nisso. A gente não tem mais nada pra dizer. Tremenda barriga!
R – Quê isso, gata! Barriga aqui só a minha! (estufa)
J – Como é que a gente encerra o bloco? Já tá quase na hora do comercial.
R – Fácil. Chega de papo. Põe aquele teu biquininho e desce.
J – Mas o meu pai tá chamando!
R – Ele vai ter que se render à força do ibope.
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O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO
De Ivan Fernandes
Trombetas e fanfarras. O Fiscal português entra, desenrola um pergaminho e o lê diretamente para a platéia.
F - Sua Majestade o Rei D. João V faz saber aos habitantes desta capitania que, em vista das notícias que nos chegam da descoberta d’ouro nos sertões, fica obrigado a partir de hoje cada habitante a contribuir com 1/5 de seu rendimento em ouro, para a glória do reino de Portugal e a grandeza de Deus nos céus. Fui encarregado por El-Rei de colher pessoalmente os impostos. (Guarda o pergaminho e fala para as coxias) Próximo!
(entra o Brasileiro, com seu escravo, que segura uma imagem de São Bartolomeu)
F - Muito bem, entregue os quintos atrasados.
B - Como atrasados? Os quintos começaram a ser cobrados hoje!
F - E tu andas a extrair ouro desde quando, espertinho? Vamos, pague.
B - Tudo bem, pode ficar com tudo. Nem vou querer a minha parte. Tá brabo. Hoje só deu isso, ó. (entrega uma pedrinha) Nem paga a minha passagem. (vai saindo)
F - Espere. Passe pelo detector.
B - Ah, sim, claro. (para o escravo) Você me espera aqui. (passa pelo detector e nada acontece) Como viu, uma dureza medonha. As pessoas falam muito por aí que acham isso, acham aquilo, mas quando a gente vai ver não tem nada. Acho que pote de ouro só no fim do arco-íris. Obrigado. Disponha. Vamos, Alcebíades. (vai saindo)
F - Espere. O Alcebíades também passa pelo detector. (pausa tensa)
B - O Alcebíades também? (respira fundo) Muito bem. Vai lá Alcebíades.
A - Mas sinhô...
B - Tenha fé, Alcebíades. Segura na mão de Deus e vai. Mas deixa o santo aqui comigo. (pega o santo que o escravo segurava. o escravo vai, reticente. O alarme dispara)
F - A-há! (cata várias pedras de ouro do cabelo do escravo) Então? Como é que o senhor explica isso?
B - Alcebíades!!! Nunca pensei que você pudesse fazer isso comigo! Meu escravo mais antigo...
A - Mas sinhô...
B - Não quero ouvir nem mais uma palavra de você, seu velhaco. Eu não admito desonestidade! Que cara de pau! Pode recolher, seu fiscal. Leva esse malandro preso! Vê se aplica umas 200 chibatadas!
A - Mas eu só tava cumprindo ordens!
B - 300 chibatadas, pra aprender a ficar de bico calado!
(o fiscal algema o escravo)
F - Ficas aí a refletir sobre o que fizeste! Já chamo o carrasco pra dar conta de ti.
B - Peço desculpas pela confusão. Eu estou tão abalado quanto o senhor. Hoje em dia não existe lealdade. A traição pode vir de onde menos se espera. Se me permite, vou pra casa rezar. É o fim do mundo! Valei-me meu são Bartolomeu! (vai saindo)
F - Espere! São Bartolomeu também passa pelo detector. (pausa tensa)
B - O senhor está acusando São Bartolomeu de alguma coisa? É bom ter provas...
(o fiscal pega a imagem de São Bartolomeu e passa pelo detector. O alarme dispara.)
F - A-há! (tira uma tampa debaixo da imagem e caem muitas pedras de ouro) E agora, como o senhor explica isso?
B - (cai de joelhos, chorando) Milagre! (cata as pedrinhas) Vou comunicar ao papa! (vai saindo de joelhos) Aleluia, amém, aleluia, amém.
F - Espere. O ouro fica.
B - Mas é sagrado! Pertence a Deus!
F - Pode deixar que eu mesmo entrego.
B - Vou me queixar ao bispo!
F - Vai na fé.
B - (hesita) Não teria uma outra forma da gente resolver isso?
F - Outra forma?
B - E se a gente deixasse El-Rei pra lá?
F - Mas ele está mesmo pra lá, ó pá! Lá em Portugal...
B - Então! Portugal é tão longe, né? A gente resolve por aqui mesmo, eu fico com minha parte, te dou um pouquinho pra cervejinha, todo mundo fica feliz.
F - É, mas se descobrem me transferem pra África...
B - Saber como? Eu não vou contar pra ninguém. Você vai contar? Então! Toma a sua cervejinha, rapaz! Você acha que El-Rei está ligando alguma coisa pra você? Quanto é que você ganha pra ficar fiscalizando?
F - Meia pataca.
B - Meia pataca?? Eu arroto isso no café da manhã! Quantas arrobas de ouro passam aqui nos seus olhos? E El-Rei só te dá meia pataca? Toma a sua cervejinha, rapaz!
F - Queres saber? Tens razão. Portugal é longe demais. Eu vou é cuidar do meu. Vais me apresentar a tal da cervejinha.
B - Ué, mas agora? Você não tá de serviço?
F - Sabe como é. Serviço público.
B - Ah, então vamos. (vão saindo)
A - Ei! E eu?
B - Ainda tem coragem de falar? Vais apodrecer na cadeia, seu ladrão! Seu flamenguista miserável!
F - Espera eu voltar que vais entrar na chibata! O que estraga esta terra é essa gente.
B - Liga não, compadre. Logo você se acostuma por aqui. Aliás, amanhã vou extrair ouro de novo. Posso te procurar na repartição? E tomamos a cervejinha depois?
F - Prontamente.
B - Então já é.
F - Já é o quê?
B - Já é. Prontamente. Tudo bem, a língua o senhor aprende aos poucos, mas o espírito, o senhor captou rápido. Seja bem-vindo! (saem)
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O PERU
De Ivan Fernandes
1.
Mendes e Costa estão em um aviário. Olham as várias aves.
M – Mas é isso é que eu não entendo, Costa. Por que não comprar um peru congelado, como todo mundo faz?
C – Minha mulher diz que não é a mesma coisa. Meus sogros vão chegar do norte e ela quer impressionar na ceia de natal. E não dá pra discutir com minha mulher.
M – Mas por que tu me chamou aqui? E eu lá vou saber escolher um peru?
C – Mas vai me ajudar a carregar. Olha o tamanho do bicho.
M – Esse lugar parece um campo de concentração.
C – Eu não quero condenar ninguém à morte. Mas não dá pra discutir com minha mulher. Escolhe um aí.
M – Eu não. A ceia não é minha. A mulher não é minha.
C – Pra mim parecem todos iguais. (tapa os olhos) Mi – nha – mãe – man –dou – eu – es – co – lher – es – se – da – qui. (abre os olhos e olha pra ave apontada) É, meu amigo. Sobrou pra você. Até o natal tu vai ter uma vida de rei. Vai comer melhor do que eu. Vai ficar gordo. Depois... bom, depois da tempestade vem a bonança. Quer dizer, é ao contrário. (para o funcionário) Pode embrulhar. Vou levar esse aqui. Ah, não embrulha?
2.
Os dois carregam o peru pela rua.
M – Pô, Costa. Nem pra trazer o dinheiro do táxi?
C – E qual táxi ia aceitar a gente? Se nem no ônibus deixaram subir... anda, só falta uns dois quilômetros...
M – Mas tá um sol da porra... até o peru tá com os bofe pra fora. Bem que a gente podia parar pra tomar uma geladinha. Refazia as energias, e continuava.
C – Mas a minha mulher tá esperando o peru.
M – Uma só. Na sombra.
C – Então tá. Uma só, hein? Eu não quero discussão com a minha mulher. (sentam-se) Ô Bigode! Traz uma aê! E se a gente pedir mais uma, não sirva!
M – (para a platéia) Cerveja 1, cerveja 2, cerveja 3. (para Costa) Vamos pedir a conta?
C- Ô Bigode! A saideira e a conta.
M – (para a platéia) Cerveja 7, cerveja 8, cerveja 9. (para Costa) Eu acho que esse peru tá meio estranho.
C – Parece meio triste.
M – Ânimo, peru!
C – Mas olha o que a gente tá fazendo. A gente é sem educação. Só a gente é que bebe. Ele deve tá triste porque a gente não ofereceu nada pra ele.
M – Que mancada!
C – Ô Bigode, traz uma branquinha aqui pro peru.
M – (para o peru) Tu gosta de whisky?
C – (para a platéia) Cerveja 12, cerveja 13, cerveja 14. (para Mendes) Ih, Mendes!
M – Que foi?
C – Hoje é a final do Mengão, esqueceu?
M – Puta que pariu! Vamo levar esse peru logo! Se não a gente não chega no Maraca a tempo!
C – Tá louco? Se eu aparecer na frente da minha mulher nesse estado, ela não vai me deixar ir ao jogo! E não dá pra discutir com a minha mulher. É melhor a gente ir ao jogo e depois levar o peru.
M – Mas como é que a gente vai entrar no Maraca com ele?
C – Ué, não deixam entrar urubu?
M – Isso foi antes.
C – A gente disfarça. Põe uma camisa do Flamengo nele e um óculos escuros. Ninguém vai notar.
M – Mas eu não aguento carregar ele até lá.
C – Ô Bigode! Arruma aí um carrinho de mão! E a conta! E a saideira!
3.
No Maraca. Narração de rádio de um gol do Flamengo. Som de torcida gritando gol. Costa e Mendes gritam e comemoram o gol do Flamengo, levantando o peru no ar.
C e M – É campeão! É campeão!
Ouvimos uma bateria de escola de samba. Eles sambam com o peru.
C – Pô, peru! Tu é o maior pé-quente.
M – Tu é sangue bom. Pena que vai pra panela.
C – Eu não posso. A gente não pode fazer isso com ele.
M – A gente não. A ceia é tua, a mulher é tua.
C – Não é justo. Que vida que esse peru conheceu? Ficou preso naquele aviário e só. O que ele conhece do mundo? Ele ainda tem toda uma vida pela frente. Quanto tempo vive um peru?
M – Duzentos anos.
C – Isso é tartaruga.
M – Ah, é.
C – Tanto faz. E agora tá condenado a morrer por causa de uma tradição idiota.
M - (para o peru) Eu nem gosto da sua carne. Eu nunca comi nenhum parente seu no natal.
C – Você não entende? Esse peru é um símbolo da gente. Que vida que a gente conhece? O que a gente conhece do mundo? Quanto tempo a gente ainda tem de vida?
M – Duzentos anos.
C – Isso é tartaruga.
M – Ah, é.
C – A gente precisa de um ato heróico. Algo que dê significado à nossa vida! Liberdade para os perus! Nós vamos jogar ele aqui de cima do Maraca.
M – Hein?
C - Tu não lembra quando eles soltaram um urubu que passou voando no campo?
M - Mas era um urubu, não era um peru.
C - É tudo a mesma coisa.
M – Então primeiro tira a faixa de campeão dele.
C – E a camisa também.
M –Mas é o manto sagrado!
C – Como é que ele vai voar de camisa? Prejudica a estrutura dos ossos. O movimento, entendeu?
M – Mas a gente vai soltar ele pra onde? Ele não tem pra onde ir!
C – A gente vai soltar ele de volta na natureza! Lá tem tudo que ele precisa!
M – Que natureza? Onde é que tem natureza por aqui? E tu já viu algum peru andando na natureza?
C – Por isso mesmo! Todos eles estão presos! A gente precisa sensibilizar as pessoas.
M – Tá bom, mas e a tua mulher? Ela não vai se sensibilizar.
C – Justamente! Dane-se! Eu não obedeço mais! Ninguém! Vou aprender com os perus a ser livre!
M – É isso aí! Liberdade para os perus!
C – Me ajuda a desamarrar as pernas dele. Muito bem. (para o peru) Não precisa agradecer, amigo. Um dia a gente vai ser lembrado por isso, Mendes. (se prepara para arremessar o peru)
M – Peraí! Pra que lado tá o vento?
C – Isso importa?
M – Deve importar.
C – Tu já viu algum passarinho molhando a ponta da asa no bico e esticando pra sentir a direção do vento?
M – Não.
C – Então é porque não tem importância nenhuma.
M – (para o peru) Olha, tu se esconde aí em algum lugar até passar o natal. Depois a barra fica mais tranquila.
C – É isso aí! Agora voa peru! Voa pra liberdade!
(jogam o peru. Acompanham com a cabeça o peru despencar e se arrebentar lá embaixo. Olham-se frustrados)
C – (desolado) Pô! Peru não voa?
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O REI ATRASADO
De Ivan Fernandes
Madrugada. Flávia chora enquanto assiste algum filme meloso e romântico. Devora um balde de pipoca.
F - (entre lágrimas) Eu não sei porque eles passam esses filmes de madrugada... deve ser um plano pra torturar as mulheres carentes com insônia... (chora um pouco mais) Ah... o beijo... e foram felizes para sempre... (reage e desliga a tv) Chega Flávia! Sai dessa fossa! Reage! Eu já te disse que príncipe encantado só existe no cinema, minha filha! (toca a campainha) Ai, só me faltava essa! A Matilde também viu o filme e agora quer chorar no meu ombro! Eu mereço! (toca a campainha de novo) E tá com pressa! Até parece que eu posso resolver o problema dela! (abrindo a porta) Que foi, amiga? Deprimiu?
(entra um rei mago de figurino, turbante, espada e tudo o mais)
R - Boa noite.
F - Um príncipe!?
R - Na verdade eu sou rei. E desculpe bater na sua porta a essa hora. É que me perdi da minha trajetória.
F - Quer dizer que é engano? (suspira) Logo vi.
R - Foi um problema nas placas de sinalização. Eu vinha seguindo a estrela muito bem, mas aí quando cheguei nesta cidade, a estrela sumiu, só vejo nuvens no céu. Deve ser alguma tempestade.
F - É poluição mesmo. Mas aqui não precisa de estrela. A gente vê no google maps...
R - É que além de rei eu sou astrólogo. E estou seguindo uma estrela que me levará até uma criança. Essa criança vai nascer numa manjedoura, entre bois e burros. E vai ser o filho de Deus que vai trazer a paz ao mundo. (pausa)
F - O senhor é das Lojas Americanas?
R - Como?
F - Só pode ser alguma promoção... O natal no comércio chega cada vez mais cedo...
R - Natal! Sim! Essa é a senha! Natal! Você também sabe da criança? Eu larguei todas as minhas terras e reinos para procurar por ela. Parti numa viagem sem volta...
F - Olha, já vou logo avisando que não tô interessada no cartão das Lojas Americanas. Inclusive eu tô com nome sujo porque já tive um cartão desses e eu sei que eu não seguro a onda. As verdades a gente diz logo.
R - Aliás, por falar em sujeira, eu queria pedir desculpas por deixar meus camelos estacionados na sua porta. Mas é que os animais de carga daqui são tão estranhos. Andam tão rápido! Fazem um ronco esquisito e soltam fumaça. Meus camelos ficaram assustados.
F - Seus camelos? (vai até a porta e olha pra fora. Volta com a expressão incrédula de quem viu um fantasma) Mas... como assim?? Você é de verdade?! Você é um... rei mago??
R - É, o povo me chama assim. Superstições.
F - Cara, você... tá meio atrasado.
R - É, eu sei. É que eu sou um astrólogo amador. Ainda não tenho prática em seguir estrelas. Éramos 4. Os outros 3 não quiseram me esperar...
F - Não, eu quero dizer... você tá atrasado mesmo. No tempo e no espaço. Olha, eu não quero ser pessimista, mas acho que você perdeu seu lugar no presépio.
R - Peraí! A criança já nasceu??
F - Já nasceu, já cresceu, uns dizem que morreu, outros que nasceu de novo...
R - Não é possível! Mas então onde está a paz na terra aos homens de boa vontade? Onde está o amor? Não encontro nada disso pelo caminho...
F - A paz ta meio em falta, realmente, mas o amor a gente segue procurando...
R - Minha busca fracassou. Estou abandonado.
F - Não exagera. Quer dizer, você perdeu seu rumo... eu também tô meio sem rumo... por que você não deixa essa estrela pra lá e quem sabe a gente não encontra?
R - A criança?
F - Bom...não vamos apressar... deixa a gente se conhecer melhor primeiro...
R - Mas não há tempo! Eu tenho uma missão! Eu preciso seguir buscando!
F - Seguir pra onde? Há quanto tempo você tá seguindo por aí? E nunca encontrou nada!
R - Isso não impede que eu continue procurando. Essa é a minha missão!
F - Missão! O nome disso é loucura...
R - O nome disso é fé. Além do mais, se a criança nasceu, e nada mudou, talvez não seja a criança certa. Talvez ela esteja por aí em algum lugar. Precisando de alguém que acredite nela.
F - E se a missão for aqui? Agora? Quer dizer, entre todas as portas, porque você veio bater logo na minha? Quem sabe se não foi a estrela que te trouxe? A gente nunca sabe o que o destino quer. E onde é que já se viu rei sem reino, sem rainha? Não tem nenhuma rainha na jogada, né?
R - Não. Sou um rei triste e solitário.
F - Então. Quem sabe a estrela não tem outros planos pra você. Quer dizer, pra gente.
R - Então vem comigo.
F - Eu? Pra onde?
R - Vamos procurar a criança em todos os cantos e becos e fundar nosso reino em um mundo melhor.
F - Presta atenção. Talvez a criança não esteja lá fora. Talvez esteja aqui dentro.
R - Aqui na casa?
F - Não. (segura com as mãos a própria barriga) Aqui. Precisando de alguém que acredite nela. Quem sabe se você não encontrou reino e rainha?
R – Aqui? Mas eu venho de tão longe. Parece que nada meu funciona aqui... é tudo diferente... as roupas, o dinheiro, os meios de transporte.
F - É, sobre esses camelos a gente vai ter que conversar sério. O resto, a gente vai dando um jeito. Eu vou te ensinando. Vai dar um certo trabalho explicar você pras minhas amigas, mas acho que pode valer a pena.
R - Então eu fico. Mas e o mundo melhor?
F - Vamos começar ele daqui.
(beijam-se. Brilha uma estrela no céu.)
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O SONHO NÃO ACABOU
De Ivan Fernandes
MORCEGO, em roupas de hippie velho, entra em cena carregando ou arrastando com esforço um grande saco de lixo. Pousa o saco no meio da cena. Olha em volta e se certifica que está só. Tira um canivete do bolso e rasga o saco. Surge a figura de CABUÇA, vestindo camisa social e gravata, amarrado, amordaçado.
Morcego tira a mordaça de Cabuça.
C – (fala sem olhar diretamente) Pega o que você quiser. O carro. O dinheiro. Só me deixa ir embora. eu não vi você! Pode ficar tranquilo! Eu não tenho como te denunciar! Eu só quero ir embora! Eu tenho mulher e filhos!
M – Corta essa, Cabuça!
C – (parando) Cabuça? Ninguém me chama assim desde...
M – Cabuça, sou eu! O Morcego! (tira os óculos escuros)
C - Morcego da oitava série? Que tocava guitarra de cabeça pra baixo?
M - Ah, é isso. Tu lembra do meu rosto ao contrário. Deixa eu plantar uma bananeira que tu vai lembrar. (tenta) É. Tem umas coisas que eu não consigo mais. Mas ainda tenho minha guitarra. E a nossa banda, hein, Cabuça? Bons tempos, hein? Vou te dizer uma coisa: tudo que eu sou hoje, eu devo àqueles tempos.
C - Olha, morcego, bom te ver, eu te desejo muita sorte aí nesse seu ramo de sequestro, mas será que dá pra me liberar? É que hoje é meu aniversário, e tão preparando uma festa pra mim, minha mulher, meus filhos, meu chefe, então você entende, né?
M – E eu não sei? Você tá fazendo 40 anos! A gente fez planos pra esse dia, lembra não, Cabuça?
C - Não. Não lembro. E pára de me chamar de Cabuça. Meu nome é Marcelo. Pára de agir como se a gente fosse amigo de infância. A gente foi amigo na infância. É muito diferente. Aliás, a gente não foi nem amigo. A gente teve uma banda. Que acabou antes do primeiro show.
M - Eu que te apresentei os primeiros baseados.
C - Eu já parei de fumar há muito tempo.
M - Eu que te dei a primeira fita do Raul.
C - Você ainda ouve Raul, Morcego??
M - E foi pra mim que um dia você contou seu sonho.
C - Meu sonho? Que sonho?
Luz azul. Começa a tocar “sonho que se sonha só”, de raul seixas. Os dois entram na luz.
C – (fumando um cigarro imaginário) Cara, eu tive um sonho.
M- (dedilhando um violão imaginário e sussurrando a letra) Sonho que se sonha só...
C - Nesse sonho eu me via no meu aniversário de 40 anos. Só que eu não era assim como eu sou, entende?
M - Você era velho.
C - Pior. Eu usava gravata.
M - Não!
C - E trabalhava num banco.
M - Não!
C - E tinha uma esposa que eu beijava na testa todos os dias antes de sair pro trabalho. E a minha vida era assim, todo dia igual. E eu não era ninguém. Ninguém que eu sonho em ser hoje. Nada de estrada, aventura, rock, orgia. Só um cara com uma gravata. E o pior é que eu achava que eu era feliz.
M - Cara, puta bad trip esse teu sonho. Eu que não quero ficar assim nunca.
C - Por isso eu queria te pedir, Morcego: se eu ficar assim com 40 anos, você vem e me liberta. Me leva de volta pro sexo-drogas-rock’n’roll. Me sequestra mesmo. Me separa daquele mundo. Mesmo que eu reclame. Eu sei que vai ser pro meu bem. Fechado? A gente se encontra no meu aniversário de 40 anos. E monta a banda de novo. E cai na estrada.
M - Pela banda.
C - Pela banda.
Apertam as mãos. Sai a luz azul e o som
M – (terminando de cantar a velha música) Mas sonho que se sonha junto é realidade...
C - Ei, eu não quis dizer aquilo! Eu só tinha 14 anos, como é que eu podia saber? Eu não tenho nenhum problema em usar gravata.
M - Tarde demais. (corta a gravata de Cabuça com seu canivete)
C - É sério! Eu gosto muito do trabalho lá no banco! Eu gosto de beijar a minha esposa na testa! Eu tô feliz!
M - Pára de mentir. Você passa o tempo todo suspirando no seu i-pod! Fantasiando que é um grande guitarrista! Você até comprou um Guitar Hero!
C - Como você sabe disso?
M – Porque eu também tenho o meu! E passo o tempo todo brincando de ser o Keith Richards! È por isso que nós vamos remontar a banda!
C - Mas isso é loucura! E mesmo que não fosse, você acha que é simples assim? Que capital a gente ia ter pra investir nisso? Hoje em dia tudo é jabá, Morcego. Daonde vai sair o dinheiro?
M - Não se preocupe. Eu pensei em tudo. (mostra uma mala) Isso aqui vai nos ajudar nos primeiros tempos. Maconha, haxixe, pó e derivados. Woodstock é aqui, amigo. A gente vai vendendo e tocando. O negócio é auto-sustentável. Você nunca mais vai precisar voltar praquele banco. Pode dar adeus. (Cabuça começa a chorar) Tá emocionado, Cabuça?
C - Claro! Tá tudo ótimo! Eu fui sequestrado no meu próprio aniversário! Meu resgate é voltar 25 anos, no tempo, quando tinha cabelo na cintura, vivia chapado e me chamava Cabuça! Sua maleta é uma bomba ambulante! E pra completar, minha cabeça tá explodindo!
M - É a surpresa. Foi muita informação, né? Eu devia ter te preparado antes. Mas eu tenho algum remédio aqui pra dor de cabeça. (Morcego tira da mala comprimidos e dá a Cabuça, que os engole. Morcego continua revirando a maleta) Ih, caramba, não toma esses aí não cara. Errei. Quase te dei a parada errada.
C - Como quase? Eu já tomei a parada.
M - Ih...
C - Como assim “ih...”? “Ih...” por que?
M – Você acabou de tomar a maior quantidade de ácidos que eu já vi alguém tomar na vida.
C - Mas eu nunca tomei ácido!
M - Então a gente só vai conseguir tocar daqui a umas duas semanas.
C - Duas semanas? Tá maluco? Eu preciso voltar pra minha casa! Eu preciso voltar pra minha vida! Essa parada vai me matar! Eu tenho um primo que tomou ácido e passou o resto da vida pensando que era uma abóbora! Eu não quero pensar que eu sou uma abóbora! Eu sou só um cara normal com um emprego e um cachorro!
(Morcego volta a colocar a mordaça em Cabuça)
M - Ufa! Relaxa um pouco aí Cabuça. Enquanto isso eu procuro o endereço do Lebara. Lembra dele? O baterista. Sabe, eu cansei de desperdiçar a nossa vida. Gente como nós não foi feita pra trabalhar em banco, Cabuça. A gente é muito maior do que isso. Onde é que tá tudo que a gente sonhava? Eu preciso me sentir vivo, Cabuça. É agora ou nunca. A nossa vida vai voltar a fazer sentido. (toca uma sirene) Cabuça, fica na boa aí que pintou sujeira. (arranca a mordaça de cabuça.)
C - Já percebeu como os sons são musicais? Olha essa sirene, cara! (imita a sirene. entra um POLICIAL.)
P - Ei! Vocês tão de bobeira? Será que vocês podiam dar uma empurradinha? (pausa)
C - (explode numa gargalhada) Agora eu boto fé na banda. Chegou o cara do Village People! (ri muito) (canta e dança) Macho, macho man! I got to be a macho man!
M – Liga não seu guarda. É que a gente é de uma banda. Evangélica. (baixo) Pô, segura a onda aí, Cabuça.
C – Esse tal de ácido é muito doido. Parece que a gente tá num filme.
M - Se tu quer que o filme tenha final feliz, fica quietinho.
P – Então vocês podem me dar uma força? Esse meu carro só funciona a sirene. O resto só dá dor de cabeça.
C - Opa! Dor de cabeça? Dá um remedinho pra ele, Morcego!
M – Olha a compostura, Cabuça. Olha o gabarito.
C - Ah, qualé, Morcego? Vai regular a mixaria? A gente tá precisando de grana pra remontar a banda! Dá unzinho pro village people que ele vai se amarrar. Dá a mala aqui!
M - Não!
Morcego puxa a mala pra um lado, Cabuça pro outro, a mala arrebenta e espalha a droga por todos os lados. Pausa.
P – Banda evangélica, hein?
M – Mas isso é milagre, seu guarda! Aqui ficava o nosso vinho sagrado!
P – Sei. Vamo contar essa história direitinho lá na delegacia.
M – Ih, agora ela ficou braba! (dança de novo) Macho, macho man!
C – (para o guarda) Eu nem conheço ele, viu?
Cadeia. Morcego e Cabuça. Este acorda.
C – Pensei que essa onda não ia passar nunca, rapaz. Eu tive um sonho muito doido. Sonhei que a gente ia preso e o delegado fazia a gente passar a noite inteira dançando village people. Tô até com dor na perna, como se tivesse dançado a noite toda. Ainda bem que acordei. Não quero tomar isso nunca mais. Tudo que eu quero é voltar pra minha vida normal.
M - Sei não, Cabuça. É como diz o ditado: o sonho não acabou.
entra o Policial.
P – Vamo lá, cambada! Agora vocês vão dançar pra galera do turno da manhã! Capricha!
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SAFARI RIO
de Ivan Fernandes
Aeroporto.
Zimba e Serjão seguram uma placa: OLYMPIC GAMES HERE.
S - Mas será que vai dar certo, Zimba?
Z - Se tu aparecer antes da hora, aí é que não vai dar mesmo. Vai pro teu lugar e faz o que a gente ensaiou.
Sai Serjão. Entra uma turista japonesa. Fotografa a placa. Fotografa Zimba.
Z - (no pior inglês possível) Uelcome tu Rio.
TJ- (abre um manual, lê) Você Riotur? Abertura dos jogos?
Z - No. Me Safari Rio.
TJ - Safari Rio?
Z - Yes. Safari Rio. Aventura. Éction. Emouxion. Perigo. Esse é o nosso roteiro.
Entrega um folheto. Entra um turista americano
Z - Uelcome tu Rio.
TA - Are you from Riotur?
Z - No. Me Safari Rio.
TA- Safari Rio? Like Africa?
Z - Yes! Aventura. Éction. Emouxion. Perigo. Esse é o nosso roteiro.
TA - Ter mulatas? I want mulatas.
Z - Yes! Lindas mulatas! Biutiful.
TJ - Mas ter jogos? Ronaldo? Pelé?
Z - Yes. No fim.
TA - How much?
Z - Milzinho. Tausand. Adiantado plise. (recolhe dinheiro) Comi tu mai taxi.
(acompanham Zimba até o carro, entram e ligam o carro. Andam em círculo.)
Z - Ali! Corcovado!
(Entra Serjão com um lençol e abre os braços como se fosse o corcovado)
TA e TJ - Oh... (tiram fotos)
(Serjão se empolga e posa pras fotos)
TJ - Corcovado se mexe?
Z - Yes! Niu tequinologi. (à parte) O Serjão já começou a fazer merda. (acena pra Serjão parar)
TJ - Corcovado obedece?
Z - Yes! Niu tequinologi. Lá na estátua da liberdade também tem, né não?
TA - I don’t remember.
Z - Comon. (seguem. Serjão sai de cena. Eles andam em círculo)
TA - Where do we go?
Z - Du iu wanti aventura? Du iu wanti perigo?
TA e TJ - Yeah!
Z - Vamos pra favela!
TA e TJ - Oh!
TJ - Não ser necessário helicóptero?
Z - No. Uí révi blindados. (bate no carro) No balas. No vaiolence.
TA e TJ - Oh!
Z - Vejam! Um traficante carioca! Ao vivo!
(entra Serjão vestido de traficante)
TA e TJ - Oh! (fotografam. Serjão olha para o carro)
Z - Dis is rial laife.
S - Dadinho é o caralho! Meu nome é Zé Pequeno! (corre para o carro gritando e tenta entrar. Os turistas se apavoram)
Z - Este é um típico arrastão carioca! Arrasteition! Itis okey! (sai do carro. Serjão parte pra cima dele. Brigam. Zimba faz uma pose de karatê e Serjão foge correndo. Tudo bem fake. Zimba é aplaudido pelos turistas.)
TJ - Que coragem!
TA - What a brave man! Like Stallone!
Z - Stallone também veio ao Rio! Eu que ensinei a ele!
TJ - Aquele traficante lembrar alguém...
Z - (cortando) Comon. Em frente. Seguir viagem. (andam em círculo)
TA - Where do we go?
Z - Ver a natureza. Vamos dar um pulo na Amazônia!
TJ – Amazônia? Mas não ficar em outra região?
Z - Ficava. O prefeito trouxe pra mais perto. Por causa das olimpíadas. Vejam! Um nativo!
(entra Serjão vestido de índio, dançando a dança da chuva)
TA - An indian! (fotografam)
TA - But... this is Amazônia? Where’s... floresta?
Z - Acabou. Itis over. Desmataram tudo. Só ficou ele. (Serjão chora e vai saindo)
TA - Se floresta tivesse ficado in american hands nada disso teria acontecido.
TJ - Índio lembrar alguém...
Z - (cortando) Comon. Seguir viagem. (andam em círculo)
TA - Where do we go now?
Z - Carnaval!
TA - Yes! Samba! Mulatas!
Z - Vejam! Uma típica mulata carioca! (nada acontece. Fala mais alto) Uma mulata! (nada acontece. Zimba sai do carro) Entra a mulata, porra! (entra Serjão vestido de mulata do sargentelli, de peruca e fantasia de carnaval, de visível má-vontade) Vejam a malemolência! (Zimba tenta sambar) É no balacobaco. É no telecoteco. É no ziriguidum. (para Serjão) Samba aí, pô!
S - Por que é que você não vem sambar com essa roupa e eu fico com eles?
Z - Porque a idéia foi minha. Samba aí!
S - Pois não faço mais nada.
Z - Ah, é?
(Saem no tapa. Cai a peruca de Serjão.)
TA - The indian!
TJ - O traficante!
TA - The corcovado!
TJ - É tudo o mesmo!
Z - No! It’s impression! A gente também acha japonês tudo igual, yoko! Impression!
TJ - (mostra as fotos para o americano) Veja: aqui, aqui, aqui e agora.
TA - Ah! So you are malandros, hã? (apita. Imediatamente aparece um policial.)
P - Police tourist, sir. Can i help you?
TJ - Este miserável nos vender safari falso!
P - Ah, são vocês que tão aplicando o golpe do safari, hein? Vamo ter uma conversinha com o delegado.
Z - Levanta que nós perdemo, Serjão. Só tenho uma pergunta, seu guarda. Como é que chegou tão rápido?
P – Nós equipamos todos os turistas com gps e rastreador.
Z – Pô, que falha de planejamento. A única polícia que funciona no Brasil é a do turista. Mas peraí, seu guarda! Eu sou um empresário de turismo! Safari Rio! Esse é o nosso folheto. Pense no potencial econômico do meu negócio!
P – Potencial econômico? Com essa mulata?
Z – Pois é, o que atrapalha é essa equipe. Mas com o apoio do senhor, eu posso dar um up-grade. Se por essa mulata aí eles pagaram, ó (dá as notas ao policial), milzinho cada, imagina o que eles não vão pagar por mulatas de verdade.
P – Hum. E tem cena de bandido, é?
Z - E a sua presença vai dar mais realismo na cena. Olha só as fotos que eles tiraram. Cada foto mais maneira que a outra. (policial confere as fotos nas câmeras dos turistas)
P – Eu sempre quis ser ator.
Z - Eu proponho uma coisa: o senhor recolhe esse malandro...
S – Eu? Mas Zimba, a idéia foi sua!
Z – Calma, Serjão, é só pra dar uma satisfação à sociedade... (o policial algema Serjão) Pronto, agora o senhor libera os gringos e volta aqui pra gente falar de negócios.
TJ – E nosso dinheiro?
P – Sorry, mas o dinheiro é a prova do crime. Vai ficar comigo. Me!
Z – Não diga eu, diga nós! Pensa no potencial do negócio. Deixa meio a meio. E volta pra gente conversar.
P – Muito bem. (para turistas) Dispersar! Go!
TA – What? And him?
P – Empresário brasileiro. Trabalhador. Gente séria. Se ficar reclamando quem vai preso é vocês! You! (turistas saem reclamando)(para Serjão) E tu se prepara pra dormir no xilindró!
S – Mas eu ainda não fiz minha imitação do Ronaldinho!
P – Na cadeia tem um travesti pra você. (dá metade do dinheiro a Zimba) Me espera que eu já volto.
Z – Tamos aí. (policial sai com Serjão) E quem disse que a polícia não apóia o pequeno empresário? Vamos trabalhar! (segura de novo a placa OLYMPIC GAMES HERE, à espera do próximo cliente.)
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“Cristo era Gay superinteligente” afirma Elton John
Folha de São Paulo – Capa – 20/02/2010
Folha de São Paulo – Capa – 20/02/2010
OS DOIS LADRÕES
De Ivan Fernandes
Cela escura. Dois homens jogam dados sobre um manto vermelho. Perto deles, um homem ferido, deitado de costas. Nunca vemos seu rosto: somente suas costas marcadas de chicote e sua respiração cansada.
LADRÃO 1 - Soltaram Barrabás.
LADRÃO 2 - 21. Ganhei de novo.
1 - E botaram esse aí de volta pra dentro.
2 - Que te importa? Você já me deve 3 rodadas. Aliás, 4: você apostou que quem saía era ele e Barrabás ficava. Tá me devendo.
1 - E daí? De manhã vamos morrer. (pausa)
2 - (recolhe os dados) Você me tirou a vontade de ganhar.
1 - Sabe, talvez a gente devesse devolver o manto pra ele.
2 - Não ouviu o que o guarda disse? Ele tem que ficar no sereno.
1 - O que será que ele fez?
2 - Se tá aqui com a gente, é por que é igual.
1 - Deve ser muito pior. Se até deixam a gente ficar jogando. E não bateram na gente.
2 - Fale por você. E essa ferida na minha perna?
1 - É porque você bateu na velha. Por que você foi bater na velha? Era só roubar. Aí os guardas ficam putos e te sentam o chicote.
2 - Eu não gostei do jeito como a velha olhou pra mim. Como se eu fosse um ladrão.
1 - Ela me olhou assim também. Nem por isso eu bati nela.
2 - É que você é metido a diferente. Mas é igual.
(O outro homem se mexe)
1 - Acho que ele acordou.
2 - Acho que tava acordado o tempo todo.
1 - A gente não devia deixar ele deitado nessa pedra fria.
2 - Que diferença faz? Ele também vai morrer de manhã. Além do mais se a gente desobedecer, é crucificado de cabeça pra baixo.
1 - Eu vou devolver o manto pra ele.
2 - Dizem que de cabeça pra baixo é mais demorado e mais sofrido.
1 - Eu não quero morrer com o olhar daquela velha na minha cabeça. Queria que alguém me olhasse de outra forma.
2 - Ele não é alguém.
1 - Ele me basta. (pega o manto) Vou levar um pouco d’água também. (pega uma pequena cuia d´água)
2 - Ei, tá maluco? Assim é demais! Não quer levar uns chocolates também? Isso aqui não é serviço de quarto! Que mordomia é essa prum desconhecido?
1 - Ele não é desconhecido, vai morrer junto com a gente. É quase um vizinho. (vai até o homem caído com o manto e a água. Molha o manto e passa suavemente em suas feridas. Joga um pouco de água nas suas feridas. Cobre-o. Faz tudo isso sem que jamais vejamos o rosto do homem caído.)
2 - (fala enquanto Ladrão 1 executa as ações) Viu a coroa de espinhos? Barrabás disse que é porque esse aí é o rei dos judeus. Também ô terra pra ter rei essa. O camarada faz alguma coisa bem, logo vira rei. É rei dos camelos, rei das jóias, rei das tintas, rei dos sucos. Que tal esse aí? Tem cara de rei?
1 - Não sei. Tem os olhos fechados.
2 - Eu disse. Tá morto. Tá nem sentindo o que você tá fazendo. Pra quê ficar aí ensaboando defunto? Vamos voltar a jogar. Pelo menos eu morro me sentindo um vencedor.
1 - (terminando) Agora ele deve se sentir melhor.
2 - Ele nem tem forças. E Barrabás disse que ele vai ser obrigado a carregar a própria cruz. Já imaginou isso? Carregar a própria cruz! Sabe quanto pesa uma cruz? Eu prefiro levar mil chibatadas. O que será que esse cara fez pra neguim fazer isso com ele?
1 - Deve ser porque ele anda com Madalena. Ela mesma já foi apedrejada tantas vezes.
2 - E daí? Madalena já deu pro deserto inteiro. Eu mesmo perdi a virgindade com ela. E sem pagar!
1 - Justamente. Ele disse a ela que o amor era livre, era de todos. E ela passou a amar sem escolher. E sem cobrar. É por isso que ela foi apedrejada. As outras putas devem ter ficado putas. Mó concorrência desleal.
2 – Mulher? Não sei não. Pois eu ouvi dizer que o negócio dele era com Judas. Foi Judas que caguetou ele. E sabe como foi? Judas chamou ele na frente dos guardas e eles se beijaram. Na frente de todo mundo!
1 - (corre e tira o manto e a agua de perto do corpo) Eu, hein, rosa? Tá me estranhando? Não vem não lagartixa que aqui é azulejo! E eu ajudando o cara na maior inocência. E porque vão crucificar ele do nosso lado? Vai queimar nosso filme geral! Eles pensam que a gente é igual? Falta de respeito! A gente aqui é ladrão!
2 - Ele deve ter culpa no cartório mesmo. Viu como ele nem reagiu? Os guardas batiam e ele oferecia a outra face.
1 - Mas se Judas era marido dele, por que ia dedurar o cara, sabendo que ele ia apanhar, ser preso, essa merda toda?
2 - Ah, briga de bicha é essa baixaria mesmo.
1 - Pensando bem, faz sentido.
2 - O que?
1 - Se ele diz que o amor é livre, que deve ser de todos, sem escolher, faz sentido que ele ande com Madalena e com Judas ao mesmo tempo. Não é? Amor livre! O que você acha?
2 - Eu acho que o problema desse camarada é que ele não fala. Não disse uma palavra desde que entrou aqui. Como a gente vai saber quem ele é de verdade?
1 - Ei! Ô cumpadi! Tá ouvindo? Essas histórias que contam sobre você são de verdade?
2 - Você tá aqui por que?
1 - O que você quer?
2 - Tem alguma coisa pra dizer?
(O homem permanece na mesma posição, em silêncio. Os dois ladrões vão olhar o rosto do homem caído)
1 - Que tal te parece?
2 - Um cara normal.
1 - Que nem a gente.
2 - Ele nunca abre os olhos?
1- Tá respirando.
(Barulho de passos e portas abrindo ao longe)
2 - Já deve ter amanhecido lá fora. Começaram a levar os condenados da ala 1. (para o homem caído) Ouviu? Tá chegando a nossa hora! (o homem caído não se mexe. Para o outro) Dizem que ele não tem medo porque é um feiticeiro que aprendeu a vencer a morte. Dizem que ele andava em cima das águas e o caralho.
1 - É tua última chance de esclarecer. Fala pra nós. A verdade. O que é a verdade? (cata uma pedra) Escreve aí no muro com essa pedra. Deixa alguma de coisa pros que ficarem.
2 - Por que você ainda tá preocupado com esse cara?
1 - Você não entende? Se cada um diz uma coisa com ele vivo, imagina o que vão dizer em nome dele quando estiver morto. Daqui a pouco podem até dizer que ele era um santo, um deus.
2 - Deixa de ser exagerado. Um deus crucificado no meio dos ladrões? Daqui há cinco minutos, tudo vai acabar. Ninguém nunca mais vai ouvir falar dele. Nem de nós.
1 - É. Pode ser.
(barulhos mais próximos.)
2 - (olhando pela cela) Os guardas tão abrindo a nossa ala.
1 – (senta-se) Minhas pernas sumiram. O que é se faz nessa hora?
2 – Acho que as pessoas rezam.
1 – Eu não sei rezar. Você conhece alguma reza?
2 – Só a oração de Barrabás. Barrabás aprendeu com ele quando pensou que ia morrer. Mas Barrabás foi solto e quem ficou foi ele.
1 – Mas ele não tá rezando.
2 – Isso é problema dele. Você quer rezar ou não?
1 – Reza aí que eu ter acompanho.
(ajoelham-se)
2 – (em voz alta) Pai nosso que estás no céu. Santificado seja o vosso nome. Venha a nós o vosso reino. Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai as nossas ofensas...
(luz vai sumindo, antes que a oração chegue ao fim.)
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MANCHETE:
PROIBIDÃO CARIOCA: ATÉ MULHER É PRESA POR FAZER XIXI DURANTE DESFILE.
PROIBIDÃO CARIOCA
De Ivan Fernandes
Presídio Talavera Bruce. Duas presidiárias (Xerife e Terezão) dormem. Terezão se movimenta, agitada, como se estivesse em um pesadelo, até acordar gritando.
T – Foi ele! Foi aquele cachorro! Pega!
X- (acordando em sobressalto e pegando uma faca) Ele quem? Que foi? Que puta zorra é essa?
T – (caindo em si) Foi mal, Xerife. Eu tava sonhando com meu marido de novo.
X – Porra, Teresão. Toda noite essa merda, agora.
T – O puto me botou na viração, me tomava o dinheiro e ainda me obrigava a vender pó pra ele. E quando eu caí na mão dos home, ele...
X – Foda-se. É problema teu. Se eu quisesse saber de novela, a gente tinha tv aqui.
T – Foi mal, Xerife. Eu não quis...
X – Foi mal o caralho. Agora tu cortou meu ronco. Sabe por que eu tô aqui? Sabe por que me chamam de Xerife?
T – Ouvi falar.
X – Matei pra mais de vinte. Uma piranha a mais não vai fazer diferença. Tu acha que a tua história me assusta? Tu acha que me dá pena? Foda-se! Teu marido te sacaneou? Foda-se! É por isso mesmo que eu não gosto de home. Melhor tu ficar quietinha e não encher o saco.
Gilda e Camilinha, em fantasias de carnaval, são jogadas pra dentro da cela.
X – Eita que a noite tá movimentada. É hoje que eu não durmo mais.
C – (na porta, para o carcereiro, que já se foi) Vocês não podem fazer isso! A gente tem um desfile! a escola depende de nós! Quando eu falar com o bicheiro que é o presidente, lá, o..., esqueci o nome, mas quando eu falar com ele tudo vai ficar esclarecido!
G – Eu disse que tinha visto uma placa de proibido. Eu avisei.
C – Ah, não enche, Gilda. (ainda pra porta) Isso é um absurdo! Aonde estão os direitos humanos? É uma necessidade fisiológica!
T – Saca só essas patricinhas.
(Xerife e Terezão fazem cara de “carne nova no pedaço”. Gilda nota o clima, mas Camilinha está tomada pela energia do protesto e não repara nada)
G – Camilinha...
C – E que lugar é esse que vocês nos atiram? Quando foi a última vez que esse lugar viu uma faxina? Um paninho molhado que seja. Ninguém tem um sprayzinho de bom ar pra jogar aqui, pelo menos?
G – Camilinha...
C - E esse calor? Não tem um ventiladorizinho, gente? Pelo menos devolvam os nossos leques! Eram plumas de avestruz! E você, Gilda, quê que é? Na hora de falar que o guarda tava vindo não deu um pio. E agora quer falar o quê?
G – Eu nada. Mas elas...(Gilda aponta para Xerife e Terezão, que se aproximam de forma intimidadora)
C – (engole em seco) ( baixo, para Gilda) Diz alguma coisa.
G – (para Xerife e Terezão) E aí, todo mundo curtindo o carnaval? (Xerife e Terezão não respondem e continuam encarando)
C – (baixo) Isso é coisa que se diga?
G – (baixo) E quando foi que eu conversei com alguém nessa situação? Fala você.
C - (para Xerife e Terezão) É isso aí, malandragem. Aí galera da 11! Vida bandida! Tá ligado? Primeiro comando! Segundo vermelho! Amigo dos amigos! A comunidade. A periferia. Os mano. As mina.
G – (sussurra) Ficou maluca?
C – (sussurra) Deixa de ser burra. É melhor você fazer igualzinho. (alto, cheia de gestos) É nóis! Formô! Demorô! (sussurra) Tu sabe o que elas fazem com as novatas? Então é melhor impressionar o pessoal. (alto, fingindo malandra) Dê dois mas mantenha o respeito! Essa onda que tu tira qual é? Essa marra que tu tem qual é?
(Xerife e Sandrão não se alteram e continuam com a mesma cara sinistra)
G – Eu acho que elas não ficaram muito impressionadas não.
X – Qual a sua graça, tchutchuca?
C – (tremendo) Camilinh... Camilão.
T – E veio parar aqui por quê?
C – Por que?... Porque... nesse carnaval eu acordei virada. Acordei doida pra arrumar problema, sacou? Que eu sou assim. Aí eu assaltei um ônibus. Não, uma padaria. Não, eu assaltei um banco mesmo. Peguei minha metralhadora e entrei atirando: todo mundo pro chão! Aí na fuga eu sequestrei o presidente do banco. Sequestrei também as pessoas que tavam passando. Sequestrei a imprensa. Sequestrei todo mundo. Aí foi uma confusão dos infernos e nessa confusão eu disparei e quando vi já tinha matado pra mais de cem pessoas.
X – Faço idéia de como você escondia uma metralhadora dentro dessa fantasia tamanho PP. E você, princesa, tá aqui por que?
G – Bem, depois que ela assaltou, sequestrou, matou, tudo isso aí, a gente precisou parar na rua pra fazer xixi. Aí eu fui fazer barreirinha pra camilinh... camilão. Aí chegou o guarda e me levou como cúmplice.
X – É. Uma história muito triste a de vocês. O que é a que a gente faz com elas, Terezão?
S – Choque de ordem, Xerife!
G – Ah, não! Até aqui?
T – Vocês precisam regularizar sua situação aqui dentro. Bom, comecem preenchendo este formulário. Por favor. Em 3 vias. (entrega um formulário a elas)
C – (lendo) CNPJ? Pra ficar aqui tem que ter CNPJ?
T – Olha aí, Xerife. Chegou agora e já quer sentar na janela.
X - Tchutchuca, além do CNPJ, você tem que estar em dia com o IPVA, o IPTU e o IBGE.
C – Mas a gente é inocente!
G - Foi só um xixizinho!
S – Ah, é? E o desfile? Por acaso vocês estavam regularizadas? Pagaram o ECAD? A LIESA? O Sindicato dos Artistas? A SBAT? E o imposto sobre movimentação da poupança?
G – Mas que poupança?
X (batendo na bunda de Gilda) – Essa aqui, tchuchuca!
(Gilda grita e sai correndo)
C – Muito bem. E se a gente não estiver regularizada?
S – Bom, nesse caso eu... recomendo que vocês se inscrevam na lei Rouanet e entrem na fila pra esperar patrocinador.
X – Se precisar, eu posso enquadrar vocês... no projeto. Mas precisa ter o PRONAC aprovado ou protocolado, um contador, e mais PIS, PASEP, um sonrisal e 20 hollywoods sem filtro. Além, é claro, dos 20% da minha captação.
C – Mas isso tudo só pra ficar aqui... na maior roubada?
G – Socorro! Chame... chame o ladrão! Chame o ladrão!
T – Atenção: se chamar o ladrão, vai ter que pagar o imposto sobre as chamadas telefônicas. E não fique usando trechos de música dos outros: pirataria é crime!
X – Vocês vão precisar também de nota fiscal pra tudo isso. Se precisar, eu posso fornecer uma com imposto mais baixo. Fria, naturalmente.
G – Numa fria estamos nós. Ai, Camilinha, maldita hora que a gente resolveu tomar aquelas latinhas de cerveja.
C – E você já viu carnaval sem cerveja, Gilda?
X – Então, Tchutchuca? Ou dá ou desce.
C – Bem, vou dar, né?
G – Camilinha?!
C – Economia de mercado, Gilda: em tempos de falência, a gente abre parceria.
X – Me acompanhe até atrás da cortininha por favor, pra assinatura do contrato. (saem)
T – E você? Tá curtindo o carnaval?
G – Maldita cervejinha!
FIM
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'Me dá o dinheiro ou te mato', disse a mulher.
BONNIE E CLYDE BY TARANTINO
De Ivan Fernandes
Zelina, vestida de noiva, com uma maleta. Entra Luiz Arthur, de roupão, falando ao telefone.
L – Certo, Melanie! Mande comprar 200 na Simex, a preço de mercado, saindo de posição. Vá depressa. Só faltam dois minutos pro fechamento. Isso, a do algodão vai cair, vende agora na alta! investe em alimento, que tá subindo. Compre na bolsa de grãos de tóquio 250 lotes de feijão vermelho. Me passe as chamadas de abertura da bolsa de New York e chicago. E compre 5 mil em OTNs. Aguardo. (desliga o tel) Ah, realmente, querida, que ótima recepção. O champagne de primeira em taças de cristal. Aquelas latinhas de caviar russo que ninguém come, mas fazem uma impressão ótima. o sistema de vigilância perfeito, nenhum paparazzi, sem registros. O passaporte e as passagens, tudo como nós sonhamos. Pra não falar desta suíte, não, olha pra essa suíte. Vai lá no banheiro pra você ver: tudo transparente! Vista panorâmica! Tudo melhor do que o esperado para nós. (só agora percebe a atitude da mulher) Mas você ainda às voltas com essa mala? Coração, é pra isso que existem os carregadores. (tira a maleta dela e deixa na cadeira ou cama) Olha, você toca essa sinetinha e aparece um. (ergue a sineta)
Z - Pede ao carregador pra juntar os seus cacos. Porque eu vou deixar você, Luiz Arthur. (pausa. Ele deixa cair a sineta no chão)
L – Mas... nós nos casamos hoje!
Z – E não era isso que você queria? Não lhe dei essa satisfação? Quer mais o quê? lua de mel com beijinho não tá incluído no preço.
L – Mas... Zelina... nós planejamos tudo... o desfalque... a fuga... o casamento... foram meses...
Z – Eu também planejei tudo, Luiz Arthur. O dinheiro na minha conta... a independência... o resto da vida no Caribe com um surfista tarado e de barriga tanquinho...
L – Mas nós abrimos a conta na Suíça no seu nome, só pra não despertar suspeitas... até a minha parte está lá... e a senha está na maleta, nenhum de nós sabe...
Z - (aponta uma arma) Perdeu, playboy! (pausa. O homem, surpreso, se recompõe)
H – Zelina, basta uma denúncia minha que tudo vai por água abaixo...
M - É aí que entra a chave de ouro do meu planejamento. A sua morte.
(pausa)
H – Você teria coragem, Zelina? Depois de tudo que vivemos juntos?
M – Tudo o quê, Luiz Arthur? Acompanhar os movimentos das bolsas da Ásia? Visitar bancos pra saber qual tem juros mais baixos? Medir as diferenças na taxa de câmbio dos países? Você chama isso de romance?
H – Mas aquela era a hora do planejamento. A hora do romance era agora!
M- Ah, é?! E qual a primeira coisa que você faz quando entra no nosso ninho do amor? Se tranca no banheiro com os seus jornais e as suas cotações! Faça-me o favor! Além do mais você é o homem mais pão-duro do universo! A gente desviou 50 milhões e você deu 50 centavos de gorjeta pro carregador. Você acha que eu vou me sujeitar à sua pensão? Melhor passar por cima de você e ficar com a herança!
H – Peraí! Além de roubar a minha parte, você ainda vai querer herança?
M - Quem tudo quer, fica sem nada, Luiz Arthur. Vamos, diga suas últimas palavras.
H - Posso pentear meu cabelo? Não quero que pensem que depois de morto me tornei desleixado.
M – Ególatra! Narcisista! O mundo tem que girar em torno de você, mesmo depois da sua morte! vai, Luiz Arthur, arruma o seu cabelinho...
(o homem mexe no bolso do roupão, como se fosse tirar um pente. Mas tira uma arma, que aponta para a mulher. Esta permanece com sua arma apontada para o marido)
H – E agora?
M – (chocada) Luiz Arthur... você trouxe uma arma pra nossa lua de mel? Meu Deus, com que tipo de homem eu me casei?
H – Com o tipo que não confia nunca. Um especulador de alto risco, que parte da conclusão elementar que toda mulher é uma operação financeira que tem tudo pra dar errado. Você pensa que me enganou, Zelina? Com a sua pressa em terminar as transações? Sempre me sonegando seus fundos de investimento? Mas você estava tão distraída pela sua ambição que não percebeu que é apenas uma parte do meu plano. A esta hora todas as centrais de inteligência policial devem estar se dirigindo pra cá.
M – Você não seria louco. Está envolvido nisso até o pescoço.
H – Será mesmo? O seu nome está espalhado em todas as evidências como digitais.
M – Eu era só a laranja, e você sabe disso.
H – E eles? Será que sabem? Além disso é sempre a laranja que se fode.
M – Você não teria coragem de fazer isso com a sua própria mulher.
H – Não? olhe a sua passagem. Está em nome da Melanie, minha secretária de 18 anos. a sua vai no máximo pra Bangu I! A minha para as ilhas do Caribe! Sim, minha cara Zelina, eu pensei em tudo. Entreguei você à polícia pra ficar com sua parte e poder fugir com a Melanie.
M – Aquela sonsa! Eu sempre desconfiei!
(entra um carregador.)
C – Foi daqui que tocaram a sineta?
(o homem e a mulher, com a mão que têm livre, puxam outra arma, que apontam para o carregador. Este, por sua vez, saca duas armas, que aponta para o casal. De forma que cada um tem duas armas apontadas pra si, e aponta duas para os outros)
H – O que é que está havendo aqui?
C – Abaixem as armas!
H – Não! você abaixa as armas!
C – Eu pedi primeiro!
H – Mas chegou depois!
M – Vocês abaixem as armas senão eu rodo a minha baiana aqui dentro! Porque eu não vou perder essa parada nem morta!
C – Que merda! a melanie não disse que vocês estavam armados.
M – Quem é você?
C- O namorado da Melanie.
H – Chegou tarde, garoto. a Melanie vai fugir comigo.
C – Isso é o que você pensa. Nós planejamos tudo. Estou seguindo vocês há meses. Nesse momento a polícia está com um dossiê contando tudo sobre suas atividades criminosas.
H – Isso não passa de um blefe.
C – Ah, é? Pois olhe a sua passagem e verá que o meu nome está nela. Nós vamos viver no Caribe com o dinheiro da recompensa e do acordo que a gente fez com os policiais corruptos.
H – bom, isso a gente pode resolver aqui... afinal, onde roubam dois roubam três, quatro...
C – Tá me tirando de otário? Eu carreguei as malas de vocês dez andares escada acima e a gorjeta foi 50 centavos. Que acordo vou querer com o senhor?
M – Ah, mas comigo pode ter outro tipo de acordo...
C – A senhora me desculpe, maior respeito, maior consideração, mas manter uma mulher só já dá trabalho. duas é uma coisa que eu não desejo ao pior inimigo. Eu só quero mesmo é matar vocês e ficar com a grana, muito obrigado, mas não precisa mais não.
(ao longe, soa a sirene de polícia)
C – Eu não disse que a polícia estava vindo?
H – Quem disse que a polícia estava vindo fui eu!
M – Calem a boca! Fui eu que chamou a polícia! Enquanto você vendia suas cotações no banheiro, eu plantei nessa suíte provas que incriminam meu marido!
C – Oh shit! Cada um de nós traiu o outro!
(batem na porta)
C – E agora?
M – É a polícia, ora!
H – Mas a que você chamou, a que eu chamei ou a que ele chamou?
M – Quer saber? Eu vou é fugir pela escada de incêndio.
C – Ninguém se mexe!
(daqui pra frente os 3 falam ao mesmo tempo)
H – Abaixa essa arma se não eu atiro! Os dois! a maleta é minha!
C – Se alguém se mexer toma bala! Todo mundo com a mão pra cima onde eu possa ver! A maleta é minha!
M – A maleta é minha e se alguém se meter na minha frente vai se arrepender. Tão pensando que mulher não sabe atirar? Eu vou mostrar pra vocês!
(batem na porta. Falam ao mesmo tempo ainda mais rápido)
H – O chefe aqui sou eu! eu fiz os planos! A maleta é minha!
C – A maleta é minha! Quem se mexer leva chumbo!
M – Eu vou sair fugir com a maleta custe o que custar! Quem quiser me impedir leva bala!
(batem na porta. Falam ainda mais rápido)
H – Motherfucker, motherfucker, motherfucker!
C – Son of a bitch, son of a bitch, son of a bitch!
M – Fuck you! Fuck you! Fuck you!
(os 3 atiram simultaneamente um no outro e tombam mortos simultaneamente)
Pausa.
Entra, devagar, Melanie, a jovem secretária. Olha para os mortos sem surpresa nenhuma. Cata nos cadáveres as passagens. Pega o telefone do homem e liga.
M – Alô! Capitão Nascimento? Deu tudo certo no nosso plano, amor. Me espera no aeroporto. (desliga e pega a maleta) Caribe, aí vou eu!
(música caribenha. Ela sonha com o caribe, no meio dos cadáveres, até que a luz se apague)
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SUPER AMIGOS
De Ivan Fernandes
Sala de Justiça.
Super-Homem entra, sonolento, de óculos escuros. Bate um cartão de ponto. Toma um café.
Entram Batman e Robin, de cabelos molhados. Batem o ponto.
B - Bom dia, Clark.
SH - (cumprimenta sem tirar os óculos escuros) Bruce. Robin.
R - Santa indisposição matinal, Clark.
SH - Não consigo me acostumar com esse turno da manhã.
R - Pra nós é perfeito. Na verdade acordamos mais cedo pra malhar com nosso personal.
SH - Além do mais, meti o pé na kriptonita ontem.
B - De novo? Esses seus abusos tão ficando frequentes, hein, Clark?
SH - Pra você é fácil falar. Seu planeta não explodiu com toda sua família junto quando você ainda era um bebê. E você não tá sozinho num mundo estranho e desconhecido.
B - Ele tá assim desde que a Lois trocou ele pelo Lex.
SH - Não pronuncie esse nome nessa sala!
Entra a Mulher Maravilha. Bate o ponto.
MM - Vocês estacionaram de novo na minha vaga.
B - Que eu posso fazer? Seu avião é invisível!
MM - Invisível mas ocupa espaço. Da próxima vez que seu bat-móvel aparecer amassado lembre-se disso.
R - Seu problema é que você é invejosa!
MM - Eu? Inveja de vocês? Eu sou mulher, meu bem!
R - Mas tá aí encalhada e cheia de celulite.
SH - Meninas, controlem-se.
(soa um alarme)
B - Ai! Que saco! Povo que não tem o que fazer, tem energia pra arrumar problema a essa hora! Quem vai atender?
SH (vê no monitor) – Tiroteio na baixada. Eu tô fora. Alguém se habilita?
MM - Tá louco! Se eles derrubam helicóptero, derrubam o meu avião também.
SH - Semana passada eu já peguei o serviço extra do apagão.
(entra Aquaman, de bermuda e prancha de surf)
A - Fala galera!
R - Alarme na baixada, Aquaman! Vai nessa?
A - Pirou, brother? Minha área é ali na orla...
MM - O que houve com teu uniforme?
A - Customizei. Dei uma personalizada pros novos tempos. Nesse verão não dá pra ficar usando malha inteira, não. Aliás, só vim aqui bater meu cartão (bate) porque hoje tá maior praia... (Tenta sair, não consegue) Quem fechou a porta?
B - Eu não entendo. O medidor indica um campo magnético em volta da sala de justiça. Mas não há indicação de causa.
SH - Pode ser um aumento dos raios gama na energia solar.
B - Não. É estática. Como dos aparelhos de tv.
(O Coringa aparece no monitor da Sala de Justiça. NOTA: se não for possível monitor, o Coringa deverá ficar em um plano diferente dos demais)
C- Acertou, bat-figurante!
R - Essa não. O Coringa.
C- Digam alô para as câmeras do meu novo reality show. Vocês vão ficar isolados e monitorados aí na Sala de Justiça. A cada semana o público vai votar em um de vocês.
MM - Quer dizer que só vamos poder sair quando o público votar?
C - Quem falou em sair? O público vai votar em quem vai morrer!
SH - Preciso de mais uma dose de kriptonita. (engole comprimidos verdes)
C - Vai precisar mesmo, Superpalhaço. É o fim dos Superamigos. Como juiz, júri e carrasco do meu próprio universo, eu vos declaro culpados, culpados, culpados!
B – De que crime?
C - Eu vou provar ao mundo que os valores defendidos pelos Superamigos não existem na vida real. Amizade? Heroísmo? Lealdade? Tudo isso desaparece quando o que está em jogo... é a vida!
R - Santo medidor de audiência, Batman. Vamos ser cobaias. Nossa vida está nas mãos do público.
C- Isso mesmo, velhote-prodígio! E para dar início ao nosso show, o público irá escolher agora o primeiro eliminado do programa. E você sabe, aqui no nosso programa, o herói é eliminado mesmo. Por favor, palmas para o nosso primeiro candidato.
A – Cuidado! É melhor não fazer nada que vá lamentar depois!
C – Lamentar? De jeito nenhum! Eu vou adorar!
B - Não se preocupe, Aquaman, o público está do nosso lado. Eles nunca vão ficar contra nós.
C – Café com bolinhos ou cadeira elétrica. Vamos deixar o público decidir.
MM - Não votem em mim! Eu sou a única mulher do programa! Quem mais vai usar shortinho por aqui?
R - Ih, pronto! Começou a baixaria.
MM – Ah, é? E quem tá com inveja agora?
A – Eu represento a ala jovem da audiência!
R – Eu também!
A – (irônico) Você! Pois sim! Há quanto tempo você é o menino-prodígio? Você só usa essa máscara pra esconder teus pés de galinha!
R – Pois vou te dizer onde enfiar esses pés de galinha! (brigam)
B – Parem! Deve haver uma forma de derrotar o Coringa!
SH - Et phone home! Et phone home!
MM – Vejam! Um caso grave de dependência química! Um perigo pra sociedade! Votem nele!
A – Votem nele!
B – Calem a boca! Precisamos nos unir! (briga generalizada. Batman é imobilizado) Se ao menos eu conseguisse alcançar o meu bat-cinto de utilidades... (é engolido pela briga)
SH – (dançando e fazendo sinais cósmicos) Et phone home! Et phone home!
C – (gargalhando) O caos! A anarquia!
VOZ EM OFF – Conseguirá o Coringa destruir os ideais de civilização e progresso encarnados pelos Superamigos? Conseguirá a amizade resistir ao domínio da selvageria no mundo como o conhecemos? A resposta você encontra aqui! No Clube da Cena! Reestréia dia 15 de janeiro no Planetário da Gávea! Até lá!!
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VATICANO RECONHECE 3 MIL DENÚNCIAS DE ABUSO
Maioria dos registros envolve “ebofilia”, atração física por
adolescentes do mesmo sexo
O GLOBO – O MUNDO DOMINGO 14 DE MARÇO
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
De Ivan Fernandes
Quarto de convento. Uma freira está ajoelhada em seu claustro. Um anjo
aproxima-se. NOTA: o ideal é que o Anjo seja interpretado por uma
atriz.
M - ... por minha culpa, minha tão grande culpa, minha máxima culpa.
A - Maria. (pausa) Maria. Solta os cabelos para receber o Anjo do
Senhor. (pausa) Foi difícil te encontrar aqui. Procurei por tanto
tempo. (pausa) Tem visto José?
M - Não vi nem quero. Ele nunca acreditou em mim. Me levaram até no
psiquiatra. E nem o psiquiatra acreditou em mim.
A - Eu te avisei que a denúncia de abuso era o pior caminho.
M - Me foi prometida uma criança. Uma criança que mudaria os caminhos
do mundo. E nesse novo mundo eu teria um lugar e um papel.
A - Eu sei, eu sei, Maria, eu estava lá, mas se você soubesse quantas
coisas já me foram prometidas também...
M - Ele dizia que eu era cheia de graça, que estava sempre comigo, que
eu era única entre as mulheres...
A - Se você soubesse em quantos quartos já tive que entrar pra
anunciar essas mesmas coisas...
M - E depois que eu cedi, perdeu todo o interesse por mim. (pausa)
A - (oferece) Cigarro? (Maria aceita o cigarro)
M - Voltou por que, Gabriel?
A - Estou voltando a todas que ele visitou. Mas não mais por causa
dele. Eu preciso te fazer uma pergunta, Maria. Você sabe que só desejo
o teu bem, não sabe? Me diga: você teve outros?
M - Além dele e de José? Não tive nem quero. E o que isso tem a ver?
A - Cansei de esperar o paraíso prometido. Eu acho que encontrei por
conta própria. E vim partilhar com você.
M - Ele sabe que você está aqui?
A - Antes me diga: sabe como é quando a mulher chega ao fim?
M - Ouvi falar.
A - E você? Já chegou?
M - Ao fim? Nunca. E daí?
A - E daí que a mulher quando chega ao fim encontra as portas do
paraíso, compreendeu? Ouve, Maria. Eu tenho a chave de todas as tuas
portas. O paraíso ao teu alcance. Tudo que você precisa é deitar ali.
E eu te agrado até alcançar o êxtase.
M - Você? Mas você não pode nem consegue. É anjo.
A - Pra se agradar uma mulher existem muitas formas, Maria. O toque
dos homens é bruto. O dos anjos é suave. Eles não fizeram com você
certas coisas. Fizeram? Duvido. Comigo você vai ter direito a tudo.
Faço tudo bem devagarzinho. Começo pelo seu pescoço. Depois descubro
os seus botõezinhos guardados, o caminho entre as montanhas dos seus
peitos, vou descendo pelo umbigo, dou voltas pelas coxas. Bebo do
licor entre as tuas pernas. Como se uma asinha trêmula de borboleta
passeasse por você. Imagine. Está sentindo?
M - ...
A - Só quero desfazer o nó da tua cabeça, Maria. Não quero me
aproveitar. Penso em você, não em mim. Garanto que nunca mais vai se
lembrar daquela noite horrível. Eu te ofereço a redenção.
M - Você tem feito isso com todas as outras?
A - A última, depois que descobriu o paraíso, ficou insaciável, quer
voltar lá todos os dias. Mas não posso esquecer minha missão. Você
precisa de mim, Maria. Todas as mulheres merecem o paraíso.
M - Mas todos os homens sempre vão embora. E os anjos também.
A - Pense na missão, Maria. A missão que te cabe é gigantesca. Depois
que eu tiver ido, você terá que repassar o que eu ensinei.
M - Repassar?
A - Imagine a quantidade de mulheres que vivem na escuridão, impedidas
pelos homens de conhecer o paraíso. Eu não darei conta de todas,
Maria. Você deve ensinar o caminho ao maior número de mulheres
possível. Pense num mundo melhor.
M – Um mundo sem cruz nem dor?
A - O que eu vou te fazer agora, Maria, vai mudar o sentido da palavra
sacrifício. Nós estamos fundando um novo evangelho. A partir de hoje,
esse dia será conhecido como a Sexta-feira da Paixão. Deita-te aqui.
(sinos. Maria deita-se. O anjo deita suas asas sobre ela.)
FIM
Maioria dos registros envolve “ebofilia”, atração física por
adolescentes do mesmo sexo
O GLOBO – O MUNDO DOMINGO 14 DE MARÇO
CÂNTICO DOS CÂNTICOS
De Ivan Fernandes
Quarto de convento. Uma freira está ajoelhada em seu claustro. Um anjo
aproxima-se. NOTA: o ideal é que o Anjo seja interpretado por uma
atriz.
M - ... por minha culpa, minha tão grande culpa, minha máxima culpa.
A - Maria. (pausa) Maria. Solta os cabelos para receber o Anjo do
Senhor. (pausa) Foi difícil te encontrar aqui. Procurei por tanto
tempo. (pausa) Tem visto José?
M - Não vi nem quero. Ele nunca acreditou em mim. Me levaram até no
psiquiatra. E nem o psiquiatra acreditou em mim.
A - Eu te avisei que a denúncia de abuso era o pior caminho.
M - Me foi prometida uma criança. Uma criança que mudaria os caminhos
do mundo. E nesse novo mundo eu teria um lugar e um papel.
A - Eu sei, eu sei, Maria, eu estava lá, mas se você soubesse quantas
coisas já me foram prometidas também...
M - Ele dizia que eu era cheia de graça, que estava sempre comigo, que
eu era única entre as mulheres...
A - Se você soubesse em quantos quartos já tive que entrar pra
anunciar essas mesmas coisas...
M - E depois que eu cedi, perdeu todo o interesse por mim. (pausa)
A - (oferece) Cigarro? (Maria aceita o cigarro)
M - Voltou por que, Gabriel?
A - Estou voltando a todas que ele visitou. Mas não mais por causa
dele. Eu preciso te fazer uma pergunta, Maria. Você sabe que só desejo
o teu bem, não sabe? Me diga: você teve outros?
M - Além dele e de José? Não tive nem quero. E o que isso tem a ver?
A - Cansei de esperar o paraíso prometido. Eu acho que encontrei por
conta própria. E vim partilhar com você.
M - Ele sabe que você está aqui?
A - Antes me diga: sabe como é quando a mulher chega ao fim?
M - Ouvi falar.
A - E você? Já chegou?
M - Ao fim? Nunca. E daí?
A - E daí que a mulher quando chega ao fim encontra as portas do
paraíso, compreendeu? Ouve, Maria. Eu tenho a chave de todas as tuas
portas. O paraíso ao teu alcance. Tudo que você precisa é deitar ali.
E eu te agrado até alcançar o êxtase.
M - Você? Mas você não pode nem consegue. É anjo.
A - Pra se agradar uma mulher existem muitas formas, Maria. O toque
dos homens é bruto. O dos anjos é suave. Eles não fizeram com você
certas coisas. Fizeram? Duvido. Comigo você vai ter direito a tudo.
Faço tudo bem devagarzinho. Começo pelo seu pescoço. Depois descubro
os seus botõezinhos guardados, o caminho entre as montanhas dos seus
peitos, vou descendo pelo umbigo, dou voltas pelas coxas. Bebo do
licor entre as tuas pernas. Como se uma asinha trêmula de borboleta
passeasse por você. Imagine. Está sentindo?
M - ...
A - Só quero desfazer o nó da tua cabeça, Maria. Não quero me
aproveitar. Penso em você, não em mim. Garanto que nunca mais vai se
lembrar daquela noite horrível. Eu te ofereço a redenção.
M - Você tem feito isso com todas as outras?
A - A última, depois que descobriu o paraíso, ficou insaciável, quer
voltar lá todos os dias. Mas não posso esquecer minha missão. Você
precisa de mim, Maria. Todas as mulheres merecem o paraíso.
M - Mas todos os homens sempre vão embora. E os anjos também.
A - Pense na missão, Maria. A missão que te cabe é gigantesca. Depois
que eu tiver ido, você terá que repassar o que eu ensinei.
M - Repassar?
A - Imagine a quantidade de mulheres que vivem na escuridão, impedidas
pelos homens de conhecer o paraíso. Eu não darei conta de todas,
Maria. Você deve ensinar o caminho ao maior número de mulheres
possível. Pense num mundo melhor.
M – Um mundo sem cruz nem dor?
A - O que eu vou te fazer agora, Maria, vai mudar o sentido da palavra
sacrifício. Nós estamos fundando um novo evangelho. A partir de hoje,
esse dia será conhecido como a Sexta-feira da Paixão. Deita-te aqui.
(sinos. Maria deita-se. O anjo deita suas asas sobre ela.)
FIM
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NOSSOS VIZINHOS
De Ivan Fernandes
Os depoimentos a seguir são reais.
O guarda de presídio
Wilson, 38, 8 anos como agente, casado, filhos, branco, estatura média, barba rala, trabalha 24 horas seguidas e tem 72 de descanso. 2º grau completo.
- Não vou falar nada não porque se eu for falar eu vou falar um monte de coisas, e quando eu começo a falar... ah, eu não vou falar nada não... depois dá rolo isso aí... tá bom, vai, começa aí. Tá gravando?
O prisioneiro
Romeu Nogueira da Silva, o Baiúca. Tem 50 anos, preso há 29 anos por latrocínio. Não vê o Rio há muito tempo. Tem uma filha. Roupa bem simples, chinelo de dedo, barba por fazer.
- A minha cadeia é de latrocínio. Tô pagando ela ainda. Tô quase 30 anos preso e ainda não fui na rua. Não sei nem mais pra que lado fica a central do Brasil. Quando eu vim pra cadeia não tinha metrô. Se me perguntarem como é que é o metrô, quê que tem ali dentro, como é que anda aquilo, eu não vou saber responder. Minha filha quando vem visitar diz por exemplo assim: “se você for em Nilópolis, você não conhece mais aquilo lá, é uma cidade, tá tudo asfaltado... os terreno vazio que tinha não existe mais, é apartamento, prédio e assim por diante.”
A minha cadeia, pela ordem natural das coisas, falta seis meses pra terminar. Agora o que eu vou fazer lá na rua é difícil dizer. O senhor entende. O preso aqui tem uma porção de idéia do que vai fazer na rua, mas o problema não é esse. O problema é, como se diz, a realidade das causas humanas que ele vai encontrar diante dos seus olhos. O senhor compreende, hoje em dia na rua a pessoa, chefe de família, que nunca teve envolvida com a justiça, vai procurar trabalho e é a maior dificuldade. Agora, vamos ver, saio daqui velho. Ninguém vai querer o velho. Então você não pode comparar um elemento que tá preso há 30 anos, já com uma certa idade, com um homem novo que nunca teve preso. Ninguém vai dar esse emprego a um ex-presidiário. Isso aí já é uma grande pedra no sapato do elemento e ele não vai poder caminhar. O meu medo é aí... de eu não encontrar trabalho, porque a justiça não vai me dar apoio porque mais criminosa é a sociedade. Porque aí é que vem a delinqüência do elemento. Enquanto o elemento está na cadeia, ele não é delinquente não senhor. Aqui ele é um preso encarcerado em justiça. Então tem que realmente fazer que ele chegue na rua e não volte mais. É esse meu problema...
O guarda
- Eles culpam a sociedade, dizem que ela é culpada. A sociedade não é culpada de ninguém cometer crime. Por exemplo, eu não nasci guarda de presídio. Eu nasci como qualquer outro nasce, de família pobre. Nem por isso ninguém lá de casa saiu até hoje pra roubar e tirar nada de ninguém. Sempre vivemos com o que podia. E quando eles vem preso querem culpar a sociedade.
O prisioneiro
- Eu roubava, roubava mesmo. Não tinha nada pra comer, cara. Não tenho pai. Não tenho mãe. Não tenho porra nenhuma. Tinha que roubar pra comer. Ou roubava ou entrava na porrada.
O guarda
- Tudo bem, mas e aquelas pessoas que eles mataram? O caso desse que te deu a entrevista é 157, latrocínio. Porra, um cidadão trabalhador, encontra aí um facínora desse que elimina a vida dele! Quem é que paga isso? Se um preso desses morre assassinado na cadeia o Estado é obrigado a pagar por ele, indenizando a família. E o cidadão que morre assaltado estupidamente na rua? Quem é que paga a vida dele? Quem vai indenizar a vida dele? Ninguém.
O prisioneiro
- Tem época que quando eu deito na minha cama, só eu e meu travesseiro sabe o que a gente tá passando aqui. Então vem uma porção de idéia na cabeça mas não se concretiza nenhuma, certo? Não vai se concretizar as minhas idéias porque o que eu penso mesmo me dá até revolta. Não sei bem explicar. Eu vou chegar na rua, entendeu? E vou ter que voltar pra cadeia. Mas voltar pra cadeia não porque eu quero, porque depois de cumprir 30 anos, quem conhece da cadeia sou eu.
O guarda
- O Estado tinha que eliminar. Assaltou, 157, latrocínio, estupro... tinha que ser executado. Porque cadeia não recupera ninguém. Pegar 30, 20, 10 anos. Isso não resolve nada. Eu não vou dizer pra você que eu sou contra os direitos humanos não. Eu acho que tem que existir. Mas existir pra todo mundo. Não só pra marginalidade. Todo mundo, sem exceção de ninguém. Você agora tá aqui, você deve ter mãe, tem uma irmã, tem pai. De repente, Deus me livre e guarde, entram alguns elementos na sua casa e esculacham a sua família, tá? Fazem de tudo com a sua família. Você vai ficar satisfeito com esse tipo de coisa? No mínimo, tá? O seu desejo vai ser de quê? De matar esse cara. Principalmente se pegar uma irmã sua, ou fazer uma coisa dessas na sua mãe. Isso se não fizer também no seu pai. Só pra arrasar a família toda. Eu nunca passei por uma experiência dessas. Eu tenho medo da minha reação.
O prisioneiro
- Porra, onde é que nós estamos? Que terra é essa, rapaz? Como é que você pode ser preso por uma polícia, por um cara que é mais corrupto, mais safado do que eu?
O guarda
- Mas você não me perguntou como é encontrar um cidadão desses lá fora, depois que ele sai. É, não me perguntou isso. Eu tenho um colega, Farias, que trabalhou aqui com a gente. Encontrou um ex-preso na rua, ele viu 3 pessoas. Eram umas onze horas da noite. Uma das pessoas apontou uma arma assim pra ele e disse “E aí, e agora? Lá dentro é com vocês. Agora é comigo. Ajoelha pra morrer.” Aí o cara que tava atrás atirou nele, POU!!! Recebeu ainda outro tiro no braço. Ficou caído lá fingindo de morto. Ouviu o cara recarregando a arma. Levou mais um tiro. Esperou os caras irem embora. Levantou e foi andando pro hospital, cheio de bala. Essas são as pessoas que eles põem aqui pra recuperar, dizendo que é nossa obrigação recuperar.
O prisioneiro
- Dá licença? Ainda tá gravando? Queria mandar um recado pra minha filha. Ela faz aniversário hoje. Tem mais de dez anos que eu não vejo.
- Alô neném! Aquela benção! Papai te ama!
O guarda
- Mas isso que eu tô falando vai pra globo, é? Ah... teatro?! Isso ninguém vai ver, pra quê que é então?